23 Agosto 2019
"No caso da história recente do Brasil – e de seus vizinhos latinos americanos -, a guinada consiste em reconhecer as vítimas, exigir o cumprimento dos direitos humanos, repudiar a violência cometida por agentes de Estado, através de sua superestrutura policial e militar, afirmando assim quais valores a atual sociedade brasileira quer resguardar e que crimes pretende rechaçar e mostrar-se irredutível à sua punição", escreve Lucas de Alvarenga Gontijo, professor de Direito da PUC-MINAS e um dos organizadores do "Congresso sobre Direito, Memória, Democracia e Crimes Lesa Humanidade: Reflexão sobre os 40 anos da Lei da Anistia de 1979", a ser realizado em Belo Horizonte, nos dias 28 e 29 de agosto.
No dia 28 de agosto deste ano, completa-se 40 anos da Lei de Anistia que sinalizava o esmorecimento do Regime Militar 1964-85. Sua promulgação foi controversa na época e permanece não serenada até hoje. E não irá serenar, não há como forçar o esquecimento de crimes tão graves e que afetam todo o povo brasileiro. Quando as contas com o passado não são acertadas, ele não é passado. E este aniversário precisa ser encarado dessa maneira: não viramos a página da história, seus fantasmas estão aí, a assombrar-nos. Os réus precisam sentar-se na cadeira dos réus, as vítimas precisam ser reconhecidas como tal, somente a justiça pode dar redenção ao sinistro período e seus atores.
E por isso que essa Lei, que já conta quatro décadas, traz tanta controvérsia até hoje. A anistia dos crimes políticos é aceitável, fecharia um ciclo, embora lamentável, da história pública brasileira. Mas o perdão concedido aos “crimes conexos”, como foi previsto no Parágrafo Primeiro do Artigo 1º da Lei 6.683/79, não pode integrar ao Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Os descritos pela letra da Lei como “crimes conexos”, não são tão conexos assim. São crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis por força do Pacto de San José da Costa Rica, que o Brasil é signatário. Portanto, não são passíveis de anistia e não são passíveis de duto ou perdão. Foram cometidos de forma sistemática pelo Estado brasileiro, como “política de segurança pública” e compõem-se de assassinatos, sequestros, estupros, torturas, tudo aquilo que gostaríamos de que os humanos não fossem capazes nem mesmo de pensar.
Em 2010 o STF, em julgamento da ADPF 153, declarou por 7 votos a 2, que a Lei era válida na sua integridade e, em um ato ilegítimo embora legal, apoiando-se no formalismo autoritário do direito positivo, tentou sepultar o assunto em um acórdão que pode se definir por “esquecimento forçado”.
Entretanto, quando o formalismo deseja se sobrepor a latência dos sentimentos das vítimas, o embate continua. O direito, por outro lado, não tem força para virar a página da história somente porque magistrados de tribunais de vértice assim o desejam. As sentenças precisam convencer a sociedade de se sua legitimidade. E isso não aconteceu.
O direito não está no passado, mas no presente. A todo tempo ele pode mudar. No direito há varias portas para as retroatividades possíveis, a questão fundamental é qual seria a retroatividade legítima e qual seria a ilegítima.
Não há força nas tradições em si, quando elas não interessam mais, são tão simplesmente abandonadas ou relidas de maneira a desfigurarem-se, a força de motivação do direito vem do presente e tem sua atenção, quase sempre, voltada para o futuro.
Nossa hipótese é a de que podemos escolher o passado e esta escolha é racional, crítica e contingencial. No caso da história recente do Brasil – e de seus vizinhos latinos americanos -, a guinada consiste em reconhecer as vítimas, exigir o cumprimento dos direitos humanos, repudiar a violência cometida por agentes de Estado, através de sua superestrutura policial e militar, afirmando assim quais valores a atual sociedade brasileira quer resguardar e que crimes pretende rechaçar e mostrar-se irredutível à sua punição. Conforme o passado escolhido, perspectiva-se o futuro; seria, então, a escolha pelo futuro do respeito à dignidade humana, dos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito.
Afirmar-se-á o dever de legitimar o direito por meio da revisão de suas tradições, na compreensão de que o direito é um fenômeno temporal e modificável.
O exercício da anamnésis – isto é, reminiscência voluntária, recordação, restabelecimento da memória - é um esforço racional porque através dela se constrói uma trama capaz de dar sentido e ocorrência de fatos pretéritos. Entretanto, significa mais do que isso, pelo exercício da anamnésis se dá ênfase em uma informação retirada do passado, voluntariamente, para que se produzam efeitos no presente.
Memorar é, portanto, uma ação propositada.
Congresso sobre Direito, Memória, Democracia e Crimes Lesa Humanidade: Reflexão sobre os 40 anos da Lei da Anistia de 1979
Data: 28 e 29 de agosto de 2019
Local: Rua Albita, 250, Cruzeiro (Belo Horizonte)
Conferências: 7h30 às 12h
Grupos de Trabalho: 13 às 18h
As inscrições podem ser feitas aqui.
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O STF e o esquecimento forçado. Artigo de Lucas de Alvarenga Gontijo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU