17 Junho 2019
A jornalista, educadora marxista, socióloga e escritora chilena Marta Harnecker morreu aos 82 anos neste sábado (15), em decorrência de tumores no cérebro. Referência em pesquisas sobre a esquerda marxista, ela participou ativamente do governo de Salvador Allende, entre 1970 e 1973, colaborou durante décadas com movimentos populares no continente, e atuou como conselheira de Hugo Chávez, então presidente da Venezuela, entre 2002 e 2006.
Marta Harnecker em 1978 (Foto: Reprodução)
A reportagem é publicada por Brasil de Fato, 15-06-2019.
Harnecker é conhecida por seus mais de 80 livros publicados, alguns deles se tornaram manuais de formação política, desde os anos 1970, para o trabalho de base na América Latina e no mundo. Psicóloga, ela aprofundou sua formação no marxismo durante os anos que viveu em Paris, na década de 60, sob a orientação de Louis Althusser. Naquela época, registrou seus primeiros escritos teóricos marxistas, que foram reunidos em “Os conceitos elementares do materialismo histórico”, livro publicado em dezenas de países.
Confira abaixo a reportagem "Diálogo com Marta Harnecker: 45 anos do golpe no Chile e seus ensinamentos", de Vivian Fernandes, publicada no Brasil de Fato em 13 de setembro de 2018. O texto evidencia o olhar sensível da educadora sobre os desafios da América Latina:
"Faz 45 anos desde o dia em que um golpe derrubou um governo de esquerda da Presidência do Chile. Era um 11 de setembro, data que entrou para a história com a morte do presidente Salvador Allende e com o fim do mandato da Unidade Popular (1970-1973).
O golpe, com seus militares, adentrou no Palácio de la Moneda, em Santiago, onde Allende fez seu último discurso ao povo do país, que foi transmitido ao vivo pela Rádio Magallanes: ”Colocado em um trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. (…) A história é nossa e a fazem os povos”.
Se o governo de Allende ficou marcado por políticas de distribuição de terras, organização dos trabalhadores, melhoria da qualidade de vida da população, nacionalização das riquezas do país, na chamada “Via Chilena ao Socialismo”; a ditadura que entrou, a do general Augusto Pinochet (1973-1990), deixou suas marcas pelas mortes, torturas, perseguição política e por ser a porta principal de entrada do neoliberalismo na América Latina.
Repórter de base e educadora popular, como gosta de ser nomeada, a chilena Marta Harnecker é uma memória viva destes anos de Unidade Popular. Em contato por e-mail com o Brasil de Fato, ela, que hoje vive no Canadá, nos brindou, primeiro, com uma mensagem que tem como saudação de despedida uma frase que nos toca o coração: “Um abraço cheio de sonhos e esperanças”.
Em tempos difíceis como os que vivemos no Brasil, uma simples frase, enviada por alguém que se admira por sua capacidade intelectual e compromisso político, nos conforta. Mais do que isso, é importante voltar ao passado para entender os processos que vivemos atualmente na América Latina. Os ataques a setores populares e a violência (ou o seu discurso), bem como a entrada (ou retorno) do neoliberalismo nos atingem agora e mantêm relação com processos anteriores.
Relembrar o golpe no Chile não é simplesmente lembrar de um momento, mas aprender com o passado, com seus ensinamentos e erros. E se isso vem de Marta, com sua vocação de educadora e com a simplicidade da linguagem de uma boa repórter popular, fica ainda mais interessante. Dividida em eixos, esta matéria do Brasil de Fato, cuja construção aconteceu em diálogo com Marta, vem de suas memórias e análises já publicadas, que nos remetem à sua raiz chilena e também aos anos que viveu e construiu os governos revolucionários de Cuba e da Venezuela.
“É preciso se aproximar do pensamento também por meio do coração”, diz Marta. E com isso te convidamos à leitura.
Em 1968, Marta regressou ao Chile, depois de passar cinco anos estudando na França. Com suas raízes fincadas em seu passado como militante juvenil na Ação Católica Universitária, começa a militar no Partido Socialista em sua volta à pátria.
Dos anos cristãos iniciais, ela ainda guarda um ensinamento: “Eu sempre disse que existe algo em comum entre o cristianismo e o marxismo; e é que o cristianismo te orienta a amar as pessoas, e o marxismo te dá os instrumentos para que esse amor seja realidade; transforme as circunstâncias, transforme a sociedade, para que o amor possa ser real”.
Já no Partido Socialista, ela se dedicava ao trabalho de base, a partir da formação marxista que tinha, para debater liberdade, democracia, meios de produção, meios de consumo e para responder à campanha contra Allende, que o associava com a chegada de uma ditadura, de um totalitarismo. “Para dizer às pessoas que não vão tirar delas a geladeira, que não vão tirar seu carro, isso não tem nada a ver com o marxismo”, rememora Marta.
Uma de suas primeiras frentes de atuação foi produzir uma coleção de livros com uma linguagem simples voltada aos trabalhadores. “Esta tarefa me deixou apaixonada. Ver como se podia chegar até as pessoas com uma coisa fácil. Minha paixão é isso: como chegar com as ideias simples até as pessoas”.
“Como, além disso, eu militava no Partido Socialista na época de Allende, nós fazíamos reuniões com camponeses e operários. Eu tinha antes uma experiência nas cátedras universitárias, e na cátedra universitária era uma discussão eterna”, relata. E complementa: “Os trabalhadores aprendiam para aplicar imediatamente, então eu me apaixonei por esse trabalho com esses setores”.
Marta também fundou e dirigiu o jornal Chile Hoy, durante os anos de Unidade Popular – o que qualificou como “uma experiência muito linda” –, além de ter seguido com seu trabalho jornalístico em entrevistas como as que fazia com o povo e com figuras políticas importantes, como o presidente venezuelano Hugo Chávez.
Sobre Chile Hoy, ela recordou: “Era uma revista tipo tabloide e tinha duas ou três páginas de entrevista com algum personagem, então aí comecei a aprender a ser entrevistadora e descobri minha vocação jornalística, em meio a um processo revolucionário como era o chileno. Era um momento apaixonante, além do fato de que a revista tinha a característica de por em palavras simples estudos de intelectuais de esquerda que não chegavam até o povo”.
“E, fora isso, colocávamos o microfone ao alcance do povo, ou seja, íamos até os cordões industriais. Quando tinha greve em uma mina de cobre, ou de salitre, nós estávamos ali”, afirmou, reforçando que: “A verdade é que aprendi muito disponibilizando o microfone”.
Sobre a linha que seguiam no semanário, era o da leitura crítica, inclusive com críticas ao governo de Allende, principalmente as que vinham do povo. “Nosso critério era que, na revista, as críticas que existissem em relação ao processo, que as fizessem as pessoas. Muitas vezes, os jornalistas fazem críticas, em um sentido, é muito fácil criticar. Intelectualmente alguém sempre encontra coisas que são imperfeitas, mas é diferente quando um intelectual critica de quando o povo te diga como está sentindo os erros do processo”.
Respeitado pelo governo e pelos setores populares e sindicais, o jornal também o era pela oposição, por trazer informação de qualidade em suas páginas. “Permitimos que o jornalismo sirva para alertar, para divulgar o que há de bom e também mostrar o mal, e permitir que se corrija o processo. Isso é o que me apaixonou.”
“Eu digo que o Chile de Allende foi um precursor no século XX do socialismo no século XXI, porque Allende foi o primeiro que tratou, por uma via pacífica, de ir construindo a nova sociedade”, afirma Marta Harnecker.
“Parece-me muito interessante como Allende apresentou a necessidade de repensar o socialismo, se este se dava pela via pacífica. Dizia que tinha que ser um socialismo ‘com vinho tinto e empanadas’, duas coisas tipicamente chilenas. Ou seja, um socialismo que se enraizasse nas nossas tradições. Allende entendeu muito bem que para fazer este trânsito da institucionalidade herdada, você tinha que ter a maioria do povo a seu favor, e não sei se a esquerda entendeu isso.”
Em seu livro “Um mundo a Construir”, Marta retoma alguns pontos desta análise: “É preciso ter presente que no início da década de 70 no Chile, com o triunfo do presidente Salvador Allende, apoiado pela coalizão de esquerda Unidade Popular, começou a se desenvolver a primeira experiência mundial de mudança em direção ao socialismo, diferente à da União Soviética, já que se realizava pela via institucional, experiência que foi rapidamente derrotada por meio de um golpe militar três anos depois. Se nossa geração aprendeu algo dessa derrota, foi que se queríamos uma transformação pacífica na direção desta meta, teríamos que repensar o projeto socialista tal como se havia aplicado até então no mundo, e que, portanto, era necessário elaborar outro projeto mais adequado à realidade chilena e a via pacífica de construí-lo. Isso era o que Allende parecia intuir ao usar sua folclórica metáfora de ‘socialismo com vinho tinto e empanadas’, que apontava à construção de uma sociedade socialista democrática enraizada nas tradições nacional-populares.”
Outro grande líder com quem Marta também trabalhou foi o venezuelano Hugo Chávez, de quem foi assessora, e, assim, ela é capaz de traçar algumas das diferenças entre os dois governos: “Chávez dizia: ‘Minha via é a via pacífica, mas diferente de Allende, em que era uma via pacífica desarmada, a minha é uma via pacífica armada’, e dizia isto não porque o povo estivesse armado em milícias, mas porque ele contava com o apoio militar.”
Das contradições que emergem no governo da Unidade Popular, e que levam ao golpe militar, é possível pontuar algumas, como explica Marta Harnecker: “Muitos esqueceram que se havia conquistado o governo e não o poder; que os poderes Legislativo e Judiciário estavam nas mãos das forças opositoras; e que o pilar fundamental do Estado burguês: o Exército, se mantinha intacto, protegido pelo chamado Estatuto de Garantias Constitucionais”.
Por mais positivos que fossem os avanços do Governo Allende, uma das análises críticas que se faz é que os setores populares perdem sua força de organização, e “aparecem como meros espectadores e setores de apoio do processo.”
“Os Comitês de Unidade Popular, que haviam tido um extraordinário auge durante o período pré-eleitoral, em sua maioria desaparecem logo depois do triunfo [eleitoral]. Os partidos dedicam todos os seus quadros às novas tarefas do governo, abandonando de forma significativa seu trabalho no movimento popular”, defende Marta em um texto de balanço. Ainda assim, em zonas mapuches, estes povos originários promoveram mobilizações para recuperar suas terras ancestrais.
Como antecedentes do golpe, Marta Harnecker enumerou seis eixos da contraofensiva da extrema-direita no Chile. O primeiro era a busca em dividir a coalizão Unidade Popular, entre os “democráticos” e os “marxistas”, e para isolar os comunistas.
O segundo era o controle dos meios de comunicação: “A oposição controlava 70% da imprensa escrita e 115 das 155 rádios que existiam no país.”
A defesa da propriedade privada era o terceiro eixo da extrema-direita, utilizando de “mecanismos legais e meios de pressão para atrasar a formação da área de propriedade social”, afirma Marta.
Um quarto ponto tem a ver com a questão militar, com uma linha anti-Unidade Popular no interior das Forças Armadas. “O ponto central dessa campanha foi a denúncia da existência de grupos armados em detrimento das únicas forças armadas que deveriam existir no país. Isso dificultava enormemente qualquer tentativa de armar o povo para defender o governo popular”, analisa.
A conquista dos setores médios para uma ação contra o governo foi o quinto elemento de atuação da extrema-direita.
“Mas o objetivo fundamental, e que permitiria conquistar vários dos outros, quase poderíamos dizer que por acréscimo, foi provocar o fracasso econômico do governo popular”, como a corrida bancária, o contrabando de dólares, a paralisação de algumas indústrias, bem como o bloqueio das modificações da “injusta estrutura tributária” no Parlamento.
Ao mesmo tempo, promoviam derrotas no Congresso negando “os recursos orçamentários para levar adiante os planos do governo de caráter social: distribuição de leite, planos de saúde, de moradia e obras públicas.”
“Cada vez mais setores sociais da direita e seus aliados foram participando da política: em panelaços, manifestações de rua, paralisações de transporte, greves nas minas de cobre”, e faltava uma unidade dentro das forças governistas.
Com a situação se agravando dia após dia, chega o 11 de setembro de 1973, data em que Allende anunciaria um plebiscito popular às 11 da manhã: “A essa hora, as balas reduziram ao silêncio o heroico e consequente mandatário chileno”.
*Fragmentos da entrevista com Marta Harnecker vieram, sob sua análise, de uma entrevista com a repórter Arleen Rodríguez, do programa radiofônico cubano “A la luz del recuerdo”; de seu livro “Um mundo a Construir”, lançado também em português pela Editora Expressão Popular; e o texto “Estudiar el pasado para construir el futuro”, de 2003.
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Morre, aos 82 anos, a educadora marxista chilena Marta Harnecker - Instituto Humanitas Unisinos - IHU