04 Junho 2019
A Igreja da misericórdia é uma Igreja “que transforma as suas inúmeras leis na única lei da liberdade e da responsabilidade, uma Igreja com um centro, mas sem fronteiras, uma Igreja que, entrando no pacto de Deus com a terra, se converte à não violência e cuida de tudo o que vive.”
A reflexão é do teólogo, historiador e pastor valdense italiano Paolo Ricca, em conferência proferida em 27-04-2014, em Pádua, Itália, no congresso “Bibbia Aperta” [Bíblia aberta], e publicada por Credere Oggi, n. 202, julho-agosto de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Obrigado pelo convite. Eu sempre venho de bom grado ao “Bibbia Aperta”: sabem por quê? Porque uma Bíblia aberta, nas antigas Igrejas valdenses, era o único objeto sagrado, digamos assim, que havia; não havia sequer uma cruz antigamente. Agora, na modernidade, pinta-se uma cruz, mas, nas igrejas mais antigas, não havia nada, exceto uma Bíblia aberta.
Então, esse nome é muito caro para mim, é realmente congênito também com a pequena história da nossa pequena Igreja. E, como a fé vem do escutar, e o escutar ocorre por meio da palavra de Cristo – como diz o apóstolo Paulo –, eu acredito que a Bíblia aberta deveria ser o emblema de toda Igreja, de toda fé cristã, ainda mais se devemos dar crédito àquele relatório sobre o analfabetismo religioso na Itália, que, há alguns dias, o jornal La Repubblica noticiou, um relatório de 500 páginas, editado por Alberto Melloni e por cerca de 30 colaboradores especialistas nesse campo [1].
Esse relatório constata que 70% dos italianos que creem e que não creem nunca leem a Bíblia, que apenas 30% dos italianos são capazes de mencionar os quatro evangelistas, e que apenas 1% dos italianos é capaz de enumerar os 10 mandamentos. Digamos, portanto, que a associação “Bibbia Aperta” tem um grandíssimo trabalho a fazer na Itália, e, por isso, eu sempre fico muito feliz quando recebo o convite de vocês.
Eu pensei em subdividir o tema “Rumo a uma Igreja da misericórdia” em duas partes: na primeira, direi quais são as implicações desse tema e, sobretudo, quais são as implicações da preposição “rumo” a uma Igreja da misericórdia; na segunda parte, tentarei, na medida do possível, esperando contra toda esperança, como diz o apóstolo Paulo, traçar um fio de uma possível “Igreja da misericórdia”, que, indubitavelmente, ainda não existe.
O que significa “rumo” a uma Igreja da misericórdia? Significa que essa Igreja está além da Igreja atual, uma Igreja que ainda não existe e, portanto, a Igreja atual não é uma Igreja da misericórdia; e essa é uma constatação muito amarga, porque uma pergunta surge espontaneamente: mas que Igreja é uma Igreja que não seja “Igreja da misericórdia”? Como uma Igreja pode não ser “da” misericórdia se é “de” misericórdia que ela vive e precisamente se é “por” misericórdia de Deus que ela existe e subsiste; daquele Deus que “faz” misericórdia (cf. Rm 9), que “usa” misericórdia (cf. Lc 1), que se “compraz em usar” misericórdia (cf. Mi 7), que diz de si mesmo: Eu sou misericordioso, a misericórdia lhe pertence (cf. Sl 62), é cheio de compaixão e de misericórdia; como uma Igreja que crê nesse Deus pode não ser uma Igreja “da misericórdia”?
É por isso que esse tema surpreende, isto é, o fato de que nós devemos dizer “rumo” e devemos dizê-lo por razões autênticas, porque é assim, porque o paradoxo da Igreja como a conhecemos é que, por um lado, ela vive de misericórdia, isto é, se Deus não tivesse misericórdia a Igreja desapareceria como neve ao sol, portanto, ela existe porque existe essa misericórdia. Por isso, não devemos ir rumo a uma Igreja da misericórdia, é a misericórdia que veio até nós e, a partir desse movimento da misericórdia de Deus, a Igreja nasceu, nasce e renasce todos os dias.
Na realidade, o fato de a Igreja existir é o sinal de uma misericórdia que todos os dias se renova a partir de Deus rumo a nós. E o paradoxo é precisamente este: como é possível que uma Igreja que vive unicamente graças à misericórdia não seja, “de facto”, Igreja da misericórdia? Somos uma Igreja em tudo e por tudo objeto de misericórdia, que não consegue ser sujeito de misericórdia; somos uma Igreja que vive de misericórdia, mas que não consegue viver a misericórdia. Esse é o paradoxo implícito no nosso tema, nessa palavrinha inicial “rumo” a uma Igreja da misericórdia.
Mas por quê? O que aconteceu para que nos encontremos nesse paradoxo, que é objetivamente ainda mais misterioso já que as premissas para ser Igreja da misericórdia estavam todas lá?
Deus é amor, Jesus resumiu todo o Primeiro Testamento no duplo mandamento do amor. O apóstolo Paulo diz que duram três coisas: fé, esperança e amor, mas o amor é o maior dos três. João, por sua vez, declara que somente se nos amarmos uns aos outros é que Deus permanece em nós. Isto é, parece quase impossível que a Igreja não seja uma Igreja da misericórdia, já que o amor é o seu elemento constitutivo, qualificante, estruturante, razão pela qual se pode dizer que a Igreja nada mais é do que uma comunidade de amor recebido, acreditado e vivido. Porém, apesar de tudo isso, ainda estamos nos movendo rumo a uma Igreja do amor, da misericórdia. Eu uso esses dois termos que têm nuances diferentes, eu os adoto como sinônimos, mas, para o nosso objetivo, para o nosso tema aqui, essas nuances não são importantes, não são relevantes.
Ora, não é que o tema da misericórdia, do amor tenha sido repudiado ou ignorado pela Igreja, pelo contrário. Talvez nenhuma outra instituição em toda a história humana deu origem até hoje a tantíssimas atividades de caridade e assistenciais como a Igreja. A prática da caridade por parte da Igreja criou e administrou, ao longo dos 20 séculos da sua existência, um número incalculável de iniciativas diaconais de todos os tipos, mediante as quais a comunidade cristã claramente manifestou não apenas a sua disponibilidade, mas também a sua capacidade de amar o próximo não com a língua, mas com os fatos e em verdade (cf. 1Jo 3, 18).
Porém, nem mesmo a história extraordinariamente rica da “diaconia” cristã em todas as suas formas é suficiente para caracterizar a história da Igreja como história de amor. A Igreja foi e é, certamente, creio que como nenhuma outra instituição no mundo, Igreja da beneficência, no sentido alto e nobre da palavra, isto é, uma Igreja que faz o bem, mas não basta ser Igreja da beneficência para ser uma Igreja do amor: isso não basta.
Tudo isso apesar do fato de o amor ter se manifestado e se manifestar todos os dias, pois a “caritas” é algo grande (digo “caritas” tanto em referência à associação, à estrutura, quanto às pessoas, mas o fato “caritas” no mundo é enorme). Então, por que não é suficiente, o que é que está errado, o que é que falta à “Igreja da beneficência” para ser “Igreja do amor”?
Não falo, naturalmente, da outra história, daquela história obscura que também faz parte da história da Igreja: a história das excomunhões, das cruzadas etc.; esperemos que tudo isso tenha passado. Mas eu acredito que a razão pela qual a Igreja, mesmo sendo Igreja da beneficência, não conseguiu se tornar Igreja da misericórdia, Igreja do amor, se deve a um evento fatal, antigo, muito antigo, certamente do segundo século, talvez até do primeiro século da história cristã, e que eu descrevo como o divórcio entre verdade e amor. Na revelação de Jesus eles estavam inseparavelmente conectados, mas, em seguida, essas duas realidades se separaram, se desconectaram, se dissociaram: a verdade de um lado, o amor do outro, perdendo de vista o seu entrelaçamento vital com o risco de não compreender mais nem um nem a outra.
Assim, por exemplo, pôde ocorrer que, enquanto isso, o apóstolo Paulo na Carta aos Efésios diga que os cristãos devem seguir, devem ir atrás da verdade no amor. O que vemos? Vemos, por exemplo (são apenas exemplos, mas, na minha opinião, muito eloquentes), que a Igreja antiga conseguiu formular o seu credo, a sua confissão de fé através do Credo Apostólico e do famoso Credo Niceno-Constantinopolitano, chamado de ecumênico, sem nunca mencionar a palavra “amor”. Naturalmente, alguém pode dizer que ela está subentendida, mas é estranho confessar a fé em um Deus que é amor sem falar do amor. Pensem como seria diferente o Credo se ele dissesse, por exemplo, mais ou menos, assim:
“Creio em Deus que é amor, por amor criou os céus e a terra, por amor enviou seu Filho ao mundo, por amor faz soprar o Espírito Santo que nos torna capazes de crer, esperar e amar. Creio na Igreja, convocada pelo amor de Deus e enviada ao mundo para amar. No amor não há medo, quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele...”
Vocês não acham que um Credo desse tipo poderia ter mudado alguma coisa na história da Igreja? Não acreditam que a história da Igreja, se tivesse confessado a sua fé assim, não teria sido uma história diferente? Não acreditam que a Igreja poderia ter integrado na sua confissão de fé uma confissão de amor?
Mas não houve essa confissão de amor; e, em nível oficial, não existe nem hoje. E é significativo que, para indicar uma pessoa religiosa de qualquer fé, se diga: é um “crente”. Ninguém pensa em dizer que é um “amante”. Mas o apóstolo João diz exatamente isto: que o cristão é um amante porque é um crente, é isso que diz o Evangelho de João, que é um pouco a conclusão de todo o pensamento apostólico. E o amor não pode se substituir a outras coisas ou questões: tendo acolhido alguém na nossa Igreja, pede-se dele ou dela uma confissão de fé, mas por que não se pede também uma precisa confissão de amor?
Existe o divórcio entre verdade e amor. Diz-se: mas o amor está implícito na fé. Mas o amor não pode estar implícito, porque a natureza própria do amor é ser explícito, não há nada de mais explícito do que o amor: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). Portanto, é o amor que identifica o cristão. Certamente, também a fé, também a esperança: fé, esperança, amor são irmãos gêmeos, inseparáveis e não intercambiáveis. A fé não pode substituir a esperança e o amor, a esperança não pode substituir a fé e o amor, o amor não pode substituir a fé e a esperança: são inseparáveis e insubstituíveis, mas o maior dos três é o amor.
É essa grandeza maior que, na história e na autoconsciência da Igreja, me parece fugidia, me parece ausente. O problema, em suma, é de uma Igreja que vive de misericórdia e não consegue expressá-la, expressá-la como misericórdia.
Chegamos à segunda parte desta exposição: o que pode significar Igreja da misericórdia.
Vou articular a resposta em quatro pontos, sabendo muito bem que o panorama pode ser mais amplo; quatro delineamentos possíveis de uma possível Igreja do amor, da misericórdia.
O primeiro ponto é muito simples, poderia ser até omitido, pois já o mencionei, mas me permito insistir nele. Uma Igreja da misericórdia também é necessariamente uma Igreja da beneficência, ou seja, nenhuma Igreja do amor pode ir além desse front; não é suficiente, mas é indispensável.
“Sede misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso”, diz Jesus (Lc 6, 36). Portanto, uma Igreja do amor continuará sendo, poderá até aperfeiçoar o caráter da sua beneficência, poderá assumir conteúdos políticos além de assistenciais etc. Isso é possível e necessário, mas gostaria que este ponto fosse reafirmado. A Igreja fez bem em ser Igreja da beneficência e deve continuar sendo, na minha opinião, sem dar ouvidos às críticas habituais que ouvimos: a beneficência não resolve os problemas, a beneficência os oculta etc. Toda uma série de coisas que já ouvimos milhares de vezes, mas que não respondem àqueles que estão, concretamente, naquele momento, em perigo de morte, que naquele momento têm fome e não esperam a solução da FAO para ter um prato de comida para viver etc.
Também no Novo Testamento, na Carta aos Hebreus, há uma explícita indicação: não se esqueçam da beneficência (cf. Hb 13, 16). E o apóstolo Tiago diz: socorram os órfãos e as viúvas na sua aflição, essa é a verdadeira e pura religião diante de Deus (cf. Tg 1, 27).
Então – para retomar uma expressão feliz deste papa, que também se tornou muito difundida – a Igreja “hospital de campanha” significa a Igreja samaritana, que, na tragédia cotidiana da história humana, cuida dos feridos, mesmo que não consiga fazer a paz entre os contendores; é a “Igreja cruz-vermelha” que tanto foi zombada: ao contrário, isso está certo, mesmo que não seja suficiente para ser Igreja do amor. A Igreja que socorre as inúmeras vítimas que a história, com todas as suas crises, e a história da natureza, com todos os seus tsunamis, suscita e gera todos os dias.
Há uma palavra de Jesus que eu quero recordar neste contexto e que valoriza simbolicamente ao máximo esse fazer o bem. Uma gota de bem não tira o mal, mas tira aquele pequeno pedaço de mal. O loghion do copo de água é belíssimo:
“E quem vos der de beber um copo de água porque sois de Cristo, digo-vos em verdade: não perderá a sua recompensa” (Mc 9,41).
O copo de água não resolverá o problema da sede do mundo, a guerra da água como é temida etc., mas tira a sede que você tem naquele momento. A Igreja é capaz de lhe dar o copo de água, e o faz, e deve fazê-lo, e é somente se der o copo de água que ela pode, com boa consciência, enfrentar os problemas maiores. É a Igreja samaritana, a “Igreja cruz-vermelha” que, depois, também pode procurar ser Igreja do amor, transcendendo essa dimensão caritativa, mas não esquecendo-a: “Não se esqueçam de praticar a beneficência” (Hb 13, 16). A Igreja do amor não se esgota na Igreja samaritana, mas começa a partir dela.
Segundo ponto. Aqui está a coisa mais difícil, isto é, a Igreja do amor é aquela na qual o amor não determina apenas o seu fazer, mas também o seu ser, a sua constituição, as suas relações internas; até mesmo as suas estruturas, se é possível falar de estruturas de amor, o seu modo de raciocinar e de falar, o seu modo de estar no mundo.
Como podemos imaginar uma Igreja para a qual o amor não é apenas o motor da sua ação, do seu testemunho, mas também é propriamente o seu princípio vital, o coração da sua autoconsciência, a seiva da sua existência, a raiz da sua liberdade e da sua sabedoria? Porque não há liberdade maior do que a de amar, e não há sabedoria maior do que a do amor. Então, o que uma Igreja assim pode ser, onde o amor é idêntico à sua autoconsciência, ao seu ser? Eu diria assim – mas certamente são formulações lacunares, provisórias –: uma Igreja em que há pouca lei e muita liberdade ou, melhor, uma Igreja na qual vigora aquela que o apóstolo Tiago chama de lei perfeita, isto é, a lei da liberdade: onde reina o amor, reina a liberdade (cf. Tg 1, 25), e, portanto, uma Igreja do amor deve ser uma Igreja da liberdade e da responsabilidade.
A Igreja, na minha opinião, é afligida por um número assustador de leis. Se vocês pensarem que Jesus resumiu todas as leis em um único mandamento, que não é uma lei, porque é a lei do amor, que não é uma lei; e se vocês considerarem o que aconteceu na Igreja, isto é, a multiplicação das leis, que depois frequentemente também são leis humanas, até mesmo boas, mas que não têm a autoridade da vontade de Deus, vocês entendem como o movimento da Igreja foi exatamente antitético ao de Jesus, que resume todas as leis no amor: ama a Deus, ama ao teu próximo. E, em vez disso, a Igreja traduziu o amor, ou aquilo que ele é, em um número desproporcional de leis. Eu quase diria que a Igreja do amor é uma Igreja sem lei, senão a lei da liberdade, que é a lei do amor.
Pensem em como o apóstolo Paulo descreve a vida de uma comunidade cristã (cf. Gl 5). O espírito que anima a comunidade cristã é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, doçura, temperança, e, acrescenta, contra essas coisas não há lei, isto é, não é da lei que você pode obter essas coisas. Isto é, a vida da Igreja não pode vir das leis, não é assim que a Igreja de Deus se governa. Portanto, o segundo traço característico da Igreja do amor é, precisamente, uma Igreja da liberdade e da responsabilidade.
Terceiro delineamento. Em certo sentido, ele é mais fácil de definir: a Igreja do amor é uma Igreja que tem um centro, mas não tem fronteiras. Aqui podemos recordar uma palavra extraordinária do apóstolo Paulo, uma palavra que diz: “Deus encerrou a todos esses homens na desobediência para usar com todos de misericórdia” (Rm 11, 32). A todos, não a alguns ou a muitos. Eis, então, que você não sabe mais onde estão as fronteiras. O centro é necessário: se não há um centro, não há comunidade.
O centro – é inútil dizer – é o Cristo, mas, uma vez que você pôs firmemente esse centro, onde você traça a fronteira da circunferência a partir desse centro? Jesus traçou limites? Ao contrário, ele não tentou sempre alargar as fronteiras da comunidade da qual fazia parte, dizendo, por exemplo, de Zaqueu, o publicano excluído da comunidade israelita: “Também este é filho de Abraão” (Lc 19, 9). Mas não só. Ele diz do centurião romano: “Em verdade vos digo: nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé quanto neste pagão” (Lc 7,9). Mas não só. Ele diz da prostituta que lhe regava os pés com lágrimas e os enxugava com os cabelos: “Seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela muito amou” (Lc 7:47).
Vejam a “ambiguidade” evangélica de Jesus: muito amou! Estes estão fora? O centurião pagão, a prostituta, Zaqueu estão fora? Não! Então, onde passam as fronteiras da comunidade de Jesus? E, além disso, se devemos traçar as fronteiras do amor, onde as traçamos? Se recordarmos que, no sermão da montanha, Jesus diz que ama os inimigos (cf. Mt 5, 44), então onde passam essas fronteiras? E, se não podem ser traçadas as fronteiras do amor, então como podem ser traçadas as fronteiras da Igreja do amor?
Eu entendo que pode ser difícil imaginar uma Igreja sem fronteiras, mas, pelo menos para mim, é ainda mais difícil imaginar uma Igreja do amor com fronteiras.
Mas, além das fronteiras externas, há as fronteiras internas da comunidade cristã: por exemplo, que finalidade tem a fronteira entre clérigos e leigos? Ou a fronteira entre homens e mulheres, que finalidade tem? As únicas pessoas da comunidade de Jesus que, pelo menos, mesmo que de longe, olham para o Crucificado, a cena do Gólgota, são as mulheres, enquanto todos os homens desapareceram. Então, eu não sei muito bem onde essa fronteira lá na Igreja do amor vai acabar. Haveria tantas outras fronteiras: a fronteira confessional, nacional, racial etc. Aonde vão essas fronteiras na Igreja do amor, com um centro solidamente estabelecido e fixado, mas sem fronteiras?
Último delineamento, o quarto: a Igreja do amor é uma Igreja ecológica – permitam-me esse adjetivo que não se encaixa bem, mas não encontrei outro –, isto é, uma Igreja que leva muito mais a sério do que levou até agora o cuidado da natureza e a proteção dos animais. Parece um discurso da moda, mas, na realidade, corresponde ao primeiro pacto de Deus com a humanidade; portanto, o pacto de Deus com a terra deve estar na moda há cerca de 100 mil anos: não com Israel, não com a Igreja, não com os cristãos, nem mesmo com o ser humano, mas com a terra; aquele pacto que marcou aquela que podemos chamar de “conversão” de Deus, que, depois da experiência do dilúvio, converteu-se à não violência: “Não ferirei mais todos os seres vivos, como o fiz” (cf. Gn 8, 21). Deus não enviará mais o dilúvio, enviará a sua Palavra, o seu Espírito, o seu Filho.
Mas o que significa essa “conversão” de Deus à não violência? A que aponta? Aponta para a conversão do ser humano. E Deus colocou o arco-íris, sinal daquele pacto, nas nuvens, para que ele se recorde do seu pacto com a terra. “Quando eu vir o arco nas nuvens, eu me lembrarei do pacto perpétuo entre Deus e todos os seres vivos” (Gn 9, 16). Notemos: pacto perpétuo. Houve outros pactos: Abraão, Moisés, Jesus, muitos outros pactos, mas esse é perpétuo, isto é, vale hoje assim como há 100 mil anos. E, graças ao arco-íris, Deus se recorda de toda a criatura viva e, portanto, também se lembra de você: e você, olhando para o arco-íris, lembra-se dele que se lembra de você?
Vejam o que é essa Igreja “ecológica”: entrar no pacto de Deus com a terra significa entrar na “conversão” de Deus à não violência e assumi-la como modelo de vida na relação com a terra e, naturalmente, cuidar daquilo que vive. O arco-íris se tornou bandeira da paz, mas é também bandeira do cuidado de todo ser vivo, isto é, amar a vida do outro, daquilo que vive, seja pessoa, animal ou planta.
Esses são delineamentos possíveis de uma possível Igreja do amor, Igreja que continua sendo aquilo que foi até agora; e também a sê-lo mais, se necessário. Samaritana e “cruz-vermelha”, uma Igreja que transforma as suas inúmeras leis na única lei da liberdade e da responsabilidade, uma Igreja com um centro, mas sem fronteiras, uma Igreja que, entrando no pacto de Deus com a terra, se converte à não violência e cuida de tudo o que vive.
1. Cf. G. Bosetti. Noi italiani cattolicissimi ma analfabeti in religione. La Repubblica, 25 abr. 2014, que apresenta o texto de A. Melloni (org.), Rapporto sull’analfabetismo religioso in Italia. Bolonha: Il Mulino, 2014.
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Rumo a uma Igreja da misericórdia. Artigo de Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU