12 Fevereiro 2019
“O mesismo foi pouco estudado. O pouco tempo de sua estadia no poder e o triunfo imediatamente posterior da revolução ‘evista’ [de Evo Morales] afastaram esta corrente política da visão dos sociólogos e autores. Supôs-se que era uma articulação passageira de forças remanescentes do fracasso da ordem neoliberal. Agora, provou que possui um fundo sociológico mais sólido. É evidente que o mesismo e, é claro, o próprio [Carlos] Mesa, encarnam e representam politicamente uma parte bem delimitada das elites sociais bolivianas”, analisa Fernando Molina, jornalista e escritor boliviano, em artigo publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por CPAL Social, 07-02-2019. A tradução é do Cepat.
Evo Morales enfrentará as eleições de outubro próximo sem as anteriores certezas do triunfo avassalador de outras eleições. O candidato melhor posicionado é o ex-presidente Carlos Mesa, na liderança de uma coalizão “cidadã” que expressa, sobretudo, setores médios urbanos. Ainda que perceba a si próprio como mestiço, o mesismo ainda carece de representação em setores indígenas, cholos e populares e aí estão seus limites políticos e sociais.
A última pesquisa que se conhece mostra o ex-presidente Carlos Mesa empatado com Evo Morales, com 32% das intenções dos bolivianos. Dado que esta pesquisa, assim como a maioria das sondagens públicas, tende a sobrerrepresentar os eleitores urbanos, que neste momento são os mais críticos de Morales, a situação de Mesa não resulta tão atraente como a que vivia em dezembro, quando parecia que sua intenção de voto cresceria velozmente, após a oficialização de sua candidatura às eleições presidenciais de outubro de 2019 pela Frente Revolucionária de Esquerda (FRI, em espanhol), uma sigla já sem militantes, mas com personalidade eleitoral.
O certo é que Mesa não fez campanha, ao contrário, utilizou este tempo para organizar o grupo político, Comunidade Cidadã, que o apoiará daqui adiante. Ou, melhor dito, para o reconstituir, pois o mesismo se formou inicialmente durante seu governo (2003-2005), em guerra contra os partidos “tradicionais” ou “neoliberais”, dos quais, no entanto, era uma espécie de cisão “pela esquerda”.
Mesa chegou ao governo em 2002 como vice-presidente de Gonzalo Sánchez de Lozada, chefe do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), arquiteto das denominadas “reformas estruturais” na Bolívia. Mesa se simpatizava com este partido, mas não fazia parte dele. Previamente, havia se destacado como o intelectual mais importante do neoliberalismo: um popular jornalista e historiador que explicava e apoiava na televisão as reformas privatizadoras, e que divulgava em seus livros as ideias democrático-liberais e institucionalistas que predominaram nesta etapa, e que o MNR adotou como próprias, primeiro com Víctor Paz Estenssoro (1985-1989) e depois com Sánchez de Lozada (1993-1997; 2002-2003).
Durante a crise de outubro de 2003, quando uma coalizão de trabalhadores, camponeses e moradores dos bairros pobres se insurgiram contra Sánchez de Lozada, Mesa se afastou dele, criticou a repressão com a qual o governo pretendia se defender e, após a renúncia e saída do país do presidente, ocupou a cadeira presidencial. Durante seu curto governo, não se atreveu a mudar o modelo neoliberal, mas flertou com a nacionalização da indústria do gás e esteve a ponto de convocar a Assembleia Constituinte, tarefas que ao final cumpriria Evo Morales. No início de sua gestão, Mesa alcançou grandes níveis de popularidade, mas depois perdeu o prestígio por seu medo de encarar as mudanças nacional-populares que a situação política e o estado de ânimo da população demandavam.
Enfrentando o MNR e os outros partidos tradicionais, que o consideravam um “traidor”, governou com o segmento intelectual e menos militante do bloco que havia apoiado a Sánchez de Lozada, e teve que ponderar, em mais de uma ocasião, a possibilidade de sua renúncia como meio para mobilizar a classe média que confiava nele contra os seus inimigos de direita do Parlamento e os seus inimigos de esquerda dos sindicatos (sobretudo, o Movimento para o Socialismo de Morales). Ao final, este exercício desgastou sua credibilidade como “capitão em meio à tormenta” e, então, atacado por todos os lados, se viu obrigado a ceder seu posto ao presidente da Corte Suprema, que convocou as eleições que levaram Morales ao poder.
Mesa, no entanto, nunca perdeu completamente a sua popularidade entre as classes médias e isto o levou, primeiro, a aparecer nas pesquisas como o melhor situado para enfrentar a Morales e, segundo, a se lançar – não sem dúvidas – à arena eleitoral. Em torno destas recentes vicissitudes ressurgiu o mesismo.
O mesismo foi pouco estudado. O pouco tempo de sua estadia no poder e o triunfo imediatamente posterior da revolução ‘evista’ [de Evo] afastaram esta corrente política da visão dos sociólogos e autores. Supôs-se que era uma articulação passageira de forças remanescentes do fracasso da ordem neoliberal. Agora, provou que possui um fundo sociológico mais sólido. É evidente que o mesismo e, é claro, o próprio Mesa, encarnam e representam politicamente uma parte bem delimitada das elites sociais bolivianas.
Que parte é esta? Para responder, devemos observar o perfil de seus principais dirigentes. Quase todos eles pertencem à intelligentsia nacional: jornalistas, editores, acadêmicos, ex-funcionários internacionais e ex-diplomatas. Não há empresários e os políticos de ofício, cuja filiação assinalaremos mais adiante, são muito poucos. O grupo inicial, formado pelos colaboradores de Mesa quando era presidente, buscou se estender nestes meses conquistando jovens que repetem o mesmo perfil: “bem estudados”, ex-alunos de escolas e universidades de renome.
A intelligentsia é uma das várias classes médias nacionais, a que se destaca pela posse de capital educacional ou, dito de maneira mais clássica, “meios espirituais de produção”. Na Bolívia, o capital educacional mais valioso se adquire por meio da educação elitista, da qual ficaram marginalizados por barreiras pedagógicas e sociais os grupos de status com menor prestígio, como os cholos e indígenas. Em suma, o acesso à educação elitista (escolas de renome, estudos no estrangeiro) requer capitais simbólicos elevados, que no país se associam à “branquidade”.
O núcleo mesista provém principalmente da parte ocidental da Bolívia. Muitos de seus membros ostentam sobrenomes influentes nesta região do país (Quiroga, Paz, Aliaga, Gumucio, Mariaca, Ormachea, Urioste, etc.). Estes dirigentes saem diretamente da elite branca tradicional, ainda que os mesistas preferissem ser considerados “mestiços”, como se colhe da obra escrita de Mesa, que escreveu o ensaio La sirena y el charango para defender a mestiçagem como solução às tensões étnicas do país.
O truque está em que entre os mesistas quase não encontramos mestiços no sentido de cholos, se usamos esta palavra em um dos dois significados habituais que teve na literatura nacional: carreiristas com pouco capital simbólico que buscam “branquear-se” ou moradores de origem indígena das cidades. “Mestiço” se converte assim na autoidentificação moderna – pós-Revolução Nacional de 1952 – de um dos grupos de status mais elevado do país.
A justificação para este estilo de crescimento é de índole aristocrática ou, para ser mais precisos, ‘tecnocrática’: se foram convocados estes ou aqueles foi porque se busca que governem os “melhores”. Os melhores, por sua vez, são aqueles que se destacam em diferentes campos profissionais. Sendo assim, posto que conseguem esta distinção graças à educação elitista já descrita, esta distinção está determinada pela hierarquia tradicional do status no país, que coloca os brancos (ainda que se chamem “mestiços”) acima e os “índios” (ainda que não se reconheçam como tais) abaixo.
A intelligentsia branca contou com várias expressões políticas ao longo da história. No século XIX, o setembrismo e o partido liberal, ainda que este também foi um instrumento político dos cholos. No século XX, o silismo (seguidores do presidente protonacionalista Hernando Siles), o falangismo e os partidos radicais de esquerda surgidos da Democracia Cristã, em fins dos anos 1960, o Exército de Libertação Nacional e o Movimento da Esquerda Revolucionária. E agora, o mesismo.
Como se vê, as ideologias adotadas pela intelligentsia boliviana foram muito diferentes. O comum denominador destes diversos partidos provém de ser constituídos por grupos de status alto que, ao mesmo tempo, são ilustrados, o que os impregna de uma mesma atitude em relação aos “outros” com os quais competem no campo político, a saber, os cholos. Esta atitude repetitiva se cristaliza em um forte sentimento de superioridade (às vezes, classista, às vezes, intelectual, às vezes, moral) que funciona como elemento de coesão, quase sempre inconsciente, daqueles que o ostentam.
Se lhes perguntássemos, provavelmente os mesistas não aceitariam que: a) quase todos os seus dirigentes fazem parte do status branco, com relações íntimas com o grupo mais elevado em nossa escala do prestígio social, que é o que na Bolívia se denomina jailón (o equivalente a cuico, cheto ou mauricinho), b) tendem a ver os setores populacionais cholos e indígenas com paternalismo e superioridade, anotando os defeitos de mentalidade que estes supostamente têm (autoritários, depredadores, corporativos, meliantes – os cholos – e ignorantes, ingênuos, carne de canhão, não compreendidos – os índios -). No entanto, sua condição sociológica é evidente para muitos observadores externos, e o classismo que anotamos possivelmente explique sua estagnação nas pesquisas. Até agora Mesa rejeitou fazer qualquer aliança com os partidos conflagrados na oposição a Morales e não realizou qualquer estratégia para penetrar nos setores indígenas e indigenizados do país, que são o baluarte do MAS.
No MIR, a intelligentsia teve que se misturar com setores plebeus de grande fortaleza; uma vez que o MIR se dividiu, em 1985: o setor intelectual branco do partido formou o Movimento Bolívia Livre (MBL), que não por acaso é o lugar de origem de vários dos atuais dirigentes e assessores do mesismo. Há anos, parte do MBL formou o Movimento sem Medo, que também não por acaso é a matriz do SOL.BO, o principal aliado externo de Mesa. Outro aliado importante deste, a frente do governador de Tarija, Adrián Oliva, mostra o mesmo perfil sociológico, pois é formado por jovens tecnocratas.
Outros grupos almejaram entrar na Comunidade Cidadã, mas não mostraram as credenciais necessárias para isto. Provavelmente, ainda haja uma versão mais complexa, “ampliada”, do mesismo. Ao contrário, se esta não nascer, as limitações desta corrente para representar a “Bolívia real” poderão se tornar um formidável obstáculo, tanto para vencer eleitoralmente Morales, ainda que desgastado pelos anos no poder e por se apresentar sem aval constitucional, como, sobretudo, para governar com eficiência na esteira de um intenso período “indígena e popular”.
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Bolívia. A carta da oposição. Uma sociologia do 'mesismo' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU