01 Outubro 2018
“Envergonha-me meu gênero”, confessou o historiador francês Ivan Jablonka nas últimas páginas do ensaio literário em que, com rigor metodológico das Ciências Sociais, submergiu-se na tarefa de narrar a desditosa história de Laëtitia Perrais, uma jovem de 18 anos que foi sequestrada e assassinada em janeiro de 2011, em um subúrbio de Pornic, uma cidade perto de Nantes, e cujo corpo apareceu brutalmente esquartejado, semanas depois.
“É verdade que escrevi essa oração ao final do livro para recordar como os homens fizeram mal a Laëtitia: seu pai, seu pai adotivo, o homem que a matou, finalmente quem era o presidente da França. Ao final da lista, concluí dizendo que estava envergonhado de meu gênero”, admite Jablonka, sentado em frente aos Jardins de Luxemburgo, no bar Le Rostand de Paris, onde está dando as últimas pinceladas na conferência que dará em Buenos Aires, em poucos dias.
Através do crime de Laëtitia, Jablonka destrinchou a brutalidade da violência física, emocional, social e institucional contra as mulheres na França contemporânea. A penosa vida de Laëtitia, que Jablonka reconstrói como um sociólogo, revela uma infância atravessada pelo desamparo, diante de um pai que violentava sua mãe, uma família adotiva abusiva, seu instinto de submissão aos homens e o uso político que até o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, fez do caso Laëtitia quando acusou os juízes de ter libertado a besta que a destroçou.
“Para explicar essa frase – ‘Envergonha-me meu gênero’ – gostaria de recordar a diferença entre sexo e gênero. Não me envergonho de meu sexo: sou um homem e não quero mudar isso. O gênero é o modo como encarnamos o sexo e o comportamento que isso implica. Senti que meu gênero tinha sido totalmente transformado em horror e desprezo para com as mulheres. Disto me senti envergonhado - esclarece Jablonka -. Pela primeira vez, senti vergonha frente a esses homens que interpretam que ser um homem é se comportar assim. Meu livro é também uma reflexão a respeito do que significa ser um homem. Gostaria de acrescentar que, muitas vezes, os homens se sentem orgulhosos de ser homens, como se a masculinidade fosse a maior conquista obtida sobre a face da terra. Nessa oração – ‘Envergonha-me meu gênero’ – quis me opor a esta ideia e deixar claro que a masculinidade pode ser pobre, triste e vergonhosa. É um modo de expressar minha distância desse orgulho universal”.
Jablonka participará nos dias 2 e 3 de outubro, em Buenos Aires, do Women 20, a rede internacional de mulheres líderes que trabalha para somar equidade e desenvolvimento econômico das mulheres à agenda do G20, que em dezembro ocorrerá em Buenos Aires. No dia 3, dará sua conferência Feminicídio, do machismo ao crime, na Aliança Francesa (Córdoba 946, CABA), dentro do ciclo Ideias, organizado pela Secretaria de Cultura da Nação, apresentado por Eugenia Zicavo.
A entrevista é de Marina Artusa, publicada por Clarín-Revista Ñ, 27-09-2018. A tradução é do Cepat.
Foi criticado depois de ter confessado que se envergonhava do gênero masculino?
Não me recordo de ter sido criticado por minha posição. Alguns meses depois da publicação do livro, recebi várias mensagens de mulheres que me contavam que tinham sido golpeadas ou estupradas. Foi antes do escândalo das denúncias de abuso contra o produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, e do surgimento do movimento #MeToo que denuncia o assédio e o abuso sexual. Conto esta experiência para destacar o modo ingênuo em que eu mesmo não estava a par desta realidade que vivem muitas mulheres, até que recebi essas mensagens. Interessei-me pelo assunto e o estudei. E hoje me pergunto: Por que há tantos homens que não estão a par desta realidade ou que são indiferentes diante disto?
Encontrou resposta?
Há uma indiferença global diante deste sofrimento porque não é algo que acontece com eles, porque não os interessa escutar esses depoimentos, não é problema seu. E, além disso, têm a ideia que provavelmente esses depoimentos e o movimento #MeToo os alcance, envolva-os, coloque-os sob escrutínio, sob acusações ou até talvez que os puna. Por todos estes motivos, os homens preferem permanecer cegos. É muito surpreendente. Os homens participaram de numerosas revoluções, desde a do Neolítico até a conquista do espaço, incluindo tantas revoluções políticas. A única revolução em que não estão interessados é a revolução feminista. É a única com a qual não sentem nenhum tipo de conexão. Não digo que, por ser consciente disto, sou superior a eles, mas, sim, quero acabar com esta visão masculina “naive”, com esta inocência masculina entre aspas que mais que inocência é indiferença. Quero deter esta cegueira.
Qual foi o seu propósito ao falar do “fim dos homens”? Advertir, expor, desconstruir ou narrar a violência contra as mulheres?
Sempre penso como historiador, como alguém do âmbito das Ciências Sociais e minha missão não é julgar, nem rir, nem chorar. Minha missão é compreender. Descobrir. No caso de Laëtitia, meu propósito foi entender como e por que esta jovem foi assassinada nesse pedaço pacífico de sociedade. Por qual razão o patriarcado e a violência são tão cotidianos em nossa vida. Para mim, este tema é o ponto obscuro da democracia. A democracia permite votar, manifestar-se nas ruas, mas a violência, a misoginia e o patriarcado são seus pontos obscuros. Um dos mistérios intelectuais é compreender por que este drama social, este desastre coletivo, durou tanto. Busco compreender por que desde Homero até nossos dias este sofrimento continua.
Em uma perspectiva histórica, o sofrimento das mulheres humilhadas e a indiferença dos homens mudaram com o tempo? Já na Ilíada de Homero há exemplos de misoginia.
É comum que os historiadores digam que tudo mudou, mas no caso do patriarcado minha opinião é que nada mudou muito. Você acaba de mencionar Homero. Se voltamos sobre o final da Odisseia, há um diálogo entre Penélope e seu filho Telêmaco no qual ela fala sobre como governar Itaca, a ilha, e seu filho a faz calar. Diz-lhe: “Estamos falando de política, não é assunto para mulheres. Por favor, retorna para sua habitação com a servidão e volta ao tecido”. Isto foi descrito no século VIII antes de Cristo. Há quase três mil anos. E nada mudou. Acredito que há estruturas patriarcais cimentadas que percorrem por baixo de nossa sociedade e que não mudaram muito. A dor física e emocional, de um ponto de vista biológico, também não mudou. Ser golpeado, estuprado ou humilhado provoca o mesmo sofrimento há mil anos como hoje. O que mudou dramaticamente é como essa dor se expressa.
Ficamos mais sensíveis ao sofrimento alheio?
A sociedade presta muito mais atenção hoje. Uma mulher que sofre um estupro, se denuncia e seu agressor é identificado, é detido. E as redes sociais também se tornaram um espaço para expressar e faz circular esse sofrimento. A rede permite que a voz das vítimas seja escutada em todo o mundo. Diria que há um ou dois séculos, o único caminho para uma vítima era o silêncio ou a saída, a fuga para esquecer. Hoje, há vozes e certezas de que essa voz será escutada. Há solidariedade entre as mulheres e em nível institucional que rompe esse sofrimento na solidão. Dois anos antes do movimento #MeToo, surgiu o NiUnaMenos, que nasceu em 2015. O que ocorreu na Argentina e nos países próximos foi mais que um movimento local, pois preparou o terreno para o que aconteceu dois anos depois com o #MeToo.
O NiUnaMenos e o #MeToo são movimentos sociais?
Que outra coisa poderiam ser? De que modo poderiam ser definidos? Não são um protesto, não são um escândalo, não são somente pessoas que mandam mensagens e postam depoimentos, não são uma marcha. Não há uma presença física. Têm coerência intelectual, racional e lógica. E contam com um modo de se expressar para uma audiência ampla. Considero que ambos englobam o primeiro movimento do século XXI. Diria algo melhor: que entre a intersecção do movimento #NiUnaMenos e o movimento #MeToo nasceu uma voz, a expressão de um sofrimento e uma ação política. Vejo nestes movimentos algo revolucionário que é o fim da vergonha. Durante décadas, as mulheres se sentiram envergonhadas de ter sido agredidas ou estupradas e, de algum modo, o sentido de culpa recaía sobre elas. Agora, é muito mais claro que o culpado não é a vítima, mas o agressor. E o movimento #MeToo abriu a porta. Foi dizer: “Não me envergonho, sofri isto e quero dar meu depoimento porque aconteceu e quero que as pessoas saibam”. Esta é a primeira marca do movimento.
Quais outras marcas vê neste movimento?
A segunda é a expressão. Uma expressão internacional de depoimentos em nível global que vão todos na mesma direção. E a terceira marca é a solidariedade. Em geral, a vítima costumava estar só. #MeToo expressa o sentimento de estar juntas, que é a definição da solidariedade. Mas, há limites neste movimento. Na França, por exemplo, o nome do movimento não foi #MeToo. O nome da hashtag foi #BalanceTonPorc, cuja tradução seria “#Entrega seu porco”, com o sentido de o denunciar. Houve debate extra pelo nome da hashtag. Muitos homens se sentiram ofendidos porque eram tratados como animais, mas claramente não era esse o tema. Há matizes e sentimentos diversos de um país a outro. Contudo, o mais importante para destacar é que o movimento #MeToo não existe em alguns países. Estive na China, há seis meses, e quando perguntei sobre o movimento #MeToo, não estavam a par. Nem na China, nem no norte da África, nem nos países muçulmanos do Oriente Médio.
Só Ocidente respondeu à agressão contra as mulheres?
Isto demonstra que o movimento #MeToo é importante e revolucionário, mas só em dois continentes: na Europa e na América, considerando América do Norte e América do Sul. Isto demonstra que o feminismo tem limites hoje.
Quais são as condições de produção, efeito e disseminação da violência sexual?
A lei, por exemplo. A legislação, em inúmeros estados, expressa patriarcado. Em vários países islâmicos, a Sharia é a interpretação da lei e expressa desprezo pelas mulheres. Em alguns filmes de Hollywood e de Bollywood, as mulheres são retratadas como seres inferiores. Os heróis são os homens e as mulheres são as que esperam até que o herói retorne e as beije. Por meio da publicidade e do cinema, muitas vezes as mulheres são apresentadas como criaturas passivas. A educação é também um modo de disseminar estes modos de pensar. Há pais que educam seus filhos varões para que sejam dominadores até em relação ao restante da família. Não é de se surpreender quando alguns desses homens depois maltratam, humilham ou até matam as mulheres. Esta reação brutal é uma continuação do mesmo percurso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ivan Jablonka sobre o fim dos homens: “Envergonha-me meu gênero” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU