Por: Ricardo Machado| Edição: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto | 19 Setembro 2018
A palavra Antropoceno é relativa à área da Geologia, diz respeito aos efeitos da ação do ser humano sobre os mais variados sistemas da Terra. Entretanto, mergulhar no conceito é entrar num complexo emaranhado. Primeiro, porque não é consenso no campo científico a existência desta como uma nova era na escala geológica e, segundo, porque há inúmeras interpretações acerca dessa ideia de “efeito dos humanos sobre os ecossistemas”. Fato que não pode ser negado é que, desde que o homem fica em pé, domina a agricultura e passa a viver assentado, o planeta vem se transformando de forma exponencial. Por isso, o filósofo e pesquisador Etienne Turpin vai além da busca conceitual e compreende o “Antropoceno como um alerta sobre os efeitos agregados das ações humanas sobre humanos, não humanos e vários sistemas entrelaçados”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, acrescenta que “tem a ver com intensidade e velocidade, e como os efeitos agregados das ações humanas (muitas vezes não intencionais) que se acumulam. Mas esses efeitos não se acumulam igualmente em todos os lugares, nem para todas as pessoas ou para cada grupo de pessoas”.
E se desde que o homem começa o processo de domesticação das plantas já há alterações em todo globo, imagine quando constrói cidades e passa por cima dos mais inúmeros e diversos ecossistemas. É por isso que o tema do Antropoceno não pode ser um objeto restrito apenas a estudos de campos como Geologia, Ecologia, mas também deve se estender a áreas como Design e Arquitetura. “A arquitetura tem sido bastante resistente ao ‘impacto’ há algum tempo. Talvez desde o desvio do discurso da autonomia no discurso da arquitetura na América do Norte e na Europa, a disciplina se apegou a uma ideia de independência que a tornou cada vez mais retrógrada e reacionária, senão totalmente irrelevante para as preocupações contemporâneas”, aponta Turpin. Para ele, é preciso que tenhamos consciência de que “somos, em graus variados, reféns do Antropoceno, a imagem do Homem como Mestre da Natureza”.
Nesse sentido, talvez o caminho para se pensar numa saída seja romper com esses limites disciplinares. “Até mesmo a ideia de que a multidisciplinaridade como tal é uma chave de ouro para o bloqueio da complexidade parece um pouco como um slogan neoliberal nos dias de hoje. Não que eu seja contra, mas o que precisamos é de modelos mais ágeis e convincentes de investigação e intervenção”, acrescenta. Assim, Turpin concebe um enfrentamento aos dilemas ambientais e sociais originados pelo Antropoceno para além do debate acadêmico e disciplinar. “Na minha prática, eu trabalho cruzando vários formatos para construir alternativas, porque acredito que seja possível e urgente fazê-lo”, diz. Nesse sentido, observa que “a Filosofia pode ser praticada melhor em vários registros em que o pensamento faz parte do conjunto”, por isso vai associar essa a tantas outras práticas, como editor de livros, curador de mostras, designer, entre outras, como forma de pensar saídas ao Antropoceno. “Esse trabalho não tem a ver com prever o futuro, mas se concentra em projetar uma infraestrutura criteriosa, atentando cuidadosamente para estas trajetórias do Antropoceno”, finaliza.
Etienne Turpin | Foto: Dutch Art Iinstitute
Etienne Turpin é filósofo, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e diretor fundador do Anexact Office, escritório de arquitetura em que atua. Suas pesquisas se baseiam no design das cidades de Jacarta, na Indonésia, e Berlim, na Alemanha. Também é membro fundador do User Group, cooperativa internacional de propriedade de trabalhadores que desenvolve infraestrutura humanitária, software de código aberto e ferramentas de coleta de dados geoespaciais. Com sua parceira Anna-Sophie Springer, Turpin é pesquisador do ReassemblingNature.org, onde trabalham a partir da exposição sobre o significado das coleções de história natural no Antropoceno.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma o Antropoceno, como era geológica e ambiental, tem produzido transformações nas formas de vida e hábitos humanos em escala global?
Etienne Turpin – Em nosso escritório de pesquisa em design (anexact office), entendemos o Antropoceno como um alerta sobre os efeitos agregados das ações humanas sobre humanos, não humanos e vários sistemas entrelaçados. Isso tem a ver com intensidade e velocidade, e como os efeitos agregados das ações humanas (muitas vezes não intencionais) se acumulam. Mas esses efeitos não se acumulam igualmente em todos os lugares, nem para todas as pessoas ou para cada grupo de pessoas. Usamos o demonstrativo proximal “este” para qualificar as nossas discussões: o que este Antropoceno nos diz sobre poder político, controle social e imagens da natureza? Como no breve filme-palestra Conspiracy of the Anthros, filmado no Rio Ciliwung de Jacarta, este Antropoceno está conectado, mas é distinto de outras instanciações.
Para saber mais, veja o filme, em inglês, Conspiracy of the Anthros:
IHU On-Line – Como o Antropoceno, enquanto espírito do tempo, joga luz sobre certas ilusões epistemológicas da Modernidade? Que ilusões em especial ele ilumina?
Etienne Turpin – Esta é uma pergunta mais para Bruno Latour, que lida com essas heranças da Modernidade de modo bastante explícito. Não estou tão certo quanto ele da profundidade ou da amplitude da ilusão. Certamente, durante a colonização europeia, havia uma divisão clara e distinta entre humanos e natureza. Talvez seja por isso que Walter D. Mignolo e Catherine E. Walsh insistem em usar o termo modernidade-colonialidade.
De qualquer forma, essa divisão não desapareceu porque provou ser uma ilusão. No mínimo, por ser um limite ilusório, é guardado mais febrilmente agora do que nunca. No Brasil, o trabalho de Paulo Tavares é especialmente importante para desmontar o quadro epistemológico da modernidade-colonialidade, no que diz respeito às histórias indígenas. Se existe uma prática de arquitetura no Brasil hoje que mostra como a prática pode se envolver em trabalhos críticos, situados e urgentes é a agência Autonoma de Tavares.
Paisagens esculpidas que cobrem a costa da Guiana Francesa, no norte da Amazônia. Quase invisíveis a partir do solo, esses grandes aglomerados foram descobertos através das "arqueologias fotográficas" multicanal produzidas por Stéphen Rostain, nos anos 1980. (Foto: cortesia Stéphen Rostain)
IHU On-Line – Esse novo rearranjo produz impactos no campo do design e da arquitetura? Explique.
Etienne Turpin – A arquitetura tem sido bastante resistente ao “impacto” há algum tempo. Talvez desde o desvio do discurso da autonomia no discurso da arquitetura na América do Norte e na Europa, a disciplina se apegou a uma ideia de independência que a tornou cada vez mais retrógrada e reacionária, senão totalmente irrelevante para as preocupações contemporâneas. Não posso falar sobre a situação no Brasil, mas eu lecionei no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Rússia. Eu vivo e trabalho na Europa e faço alguns workshops, mas realmente não leciono no verdadeiro sentido da palavra. De qualquer forma, estou bastante cético em relação ao que vi na última década.
Em 2013, depois de organizar o Simpósio The Geological Turn no Taubman College, na Universidade de Michigan, altos funcionários e administradores me disseram que, apesar do enorme sucesso da própria conferência, “ninguém nunca vai se importar com o Antropoceno”. Milhares de conferências depois, sem falar da enxurrada de livros, artigos populares, publicações acadêmicas, parece claro que muitas pessoas se importam, sim, com essas preocupações. Então, eu me pergunto por que esses arquitetos-acadêmicos estavam tão ameaçados pela discussão do Antropoceno na época. Será porque a gravidade e a complexidade do problema que ele ajuda a delinear torna a arquitetura e suas tradições especialmente cúmplices da implacável destruição do planeta?
Em última análise, como o próprio capitalismo, a disciplina tentará fazer do Antropoceno um tema do qual ela possa extrair frases discursivas úteis e, então, ir à caça da próxima coisa na tentativa de representar a si mesma como um relevante campo de estudo. É um problema realmente óbvio para mim: a arquitetura acadêmica está interessada na representação habilidosa e inteligente dos problemas, de tal modo que a autoria, o poder e o controle permaneçam incontestados. Enquanto essa vontade de dominação através da representação não for superada, a disciplina simplesmente se tornará cada vez mais como um marketing tridimensional. Se isso soa muito crítico, deveríamos pelo menos admitir que a maioria das escolas de arquitetura estadunidenses hoje poderiam ser subsumidas pelas faculdades de Administração como um subcampo do marketing com poucas mudanças em seu currículo.
Assista, em inglês, aos vídeos das conferências do Geological Turn.
IHU On-Line – Ainda faz sentido a divisão categórica entre natureza e cultura? Como o Antropoceno produz uma nova deontologia?
Etienne Turpin – A divisão entre natureza e cultura às vezes é pragmática, mas não é nem categórica nem ontológica. Eu acho que é importante aceitar que existem processos independentes da mente e da cultura, chamemo-los de realidade, natureza ou do que você quiser. Ao mesmo tempo, há pouca realidade ou natureza, pelo menos na Terra, que não seja de alguma forma afetada pelo efeito agregado das atividades humanas com as quais devem interagir. Isso é algo que tentamos escrever recentemente a respeito de cidades, mosquitos e dengue – como as suposições humanas sobre essas divisões realmente orientam a política urbana e/ou os processos urbanos que ficam ainda mais fora de controle à medida que tentam ganhar o controle?
Veja o artigo, em inglês, Our Vectors, Ourselves.
À esquerda: uma fêmea do Aedes aegypti em voo, o abdômen distendido pela ingestão recente de sangue de um fotógrafo biomédico do CDC. À direita: uma superfície exoesquelética externa do Aedes aegypti feminina é estendida, tornada transparente por uma massa vermelha intra-abdominal de sangue de vertebrados. (Fotos: James Gathany - CDC | Universidade de Notre Dame)
IHU On-Line – Poderíamos dizer que o Antropoceno inaugura uma nova estética? De que ordem?
Etienne Turpin – Eu tentei escrever sobre essa estética, tanto em artigos anteriores, quanto na coleção que editei com Heather Davis, intitulada Art in the Anthropocene [Arte no Antropoceno, em tradução livre], publicado pela Open Humanities Press em 2015. No artigo “A estética não intencional do Antropoceno” [em tradução livre], eu argumentei que essas estéticas estão todas ao nosso redor, incluindo algumas mais óbvias, como as montanhas de lixo e as gigantescas chaminés industriais. Vivemos em meio a montanhas de lixo que ajudaram a produzir o Antropoceno como cascas desprezadas da acumulação industrial-capitalista. Podemos imaginar essa estética como caracterizada pelas externalidades territoriais e encarnadas da imagem do progresso sob o capitalismo.
IHU On-Line – De que forma podemos compreender o paradoxo de que o Antropoceno, justamente a era em que a ação humana interfere diretamente na autopoiesis da terra, tornou os seres humanos ainda mais reféns da natureza?
Etienne Turpin – Em uma recente exposição sobre o Antropoceno que eu organizei com Anna-Sophie Springer no contexto de uma colaboração de longo prazo chamada Reassembling the Natural, nós interviemos na exposição de um museu de história natural, reorganizando-o, criticando-o e introduzindo 18 obras de arte contemporânea para contestar a pedagogia do excepcionalismo humano que é ubíquo no museu em condições normais. Após três meses de visitação, recebemos os comentários do livro de visitas – os visitantes ficaram furiosos. Fomos acusados de destruir o museu de história natural!
Parece claro agora que, à medida que as pessoas se tornam cada vez mais conscientes das catástrofes ecológicas iminentes (sejam elas referentes à extinção, às mudanças climáticas etc.), elas se apegam ainda mais fortemente a uma imagem da natureza que está na raiz do problema! Se somos, em graus variados, reféns do Antropoceno, a imagem do Homem como Mestre da Natureza – como Ele é apresentado em quase todos os museus de história natural – torna-se um mito que deve ser defendido para não admitirmos a nossa precariedade.
Sugiro aos leitores ver as imagens da exposição de Hamburgo.
IHU On-Line – Como o Antropoceno, mais especificamente o aquecimento global, exige uma nova forma de relação com as comunidades/populações mais fragilizadas pelo rearranjo climático? Em particular, qual a contribuição do design e da arquitetura nesse sentido?
Etienne Turpin – Minha prática tem sido uma extensa etnografia institucional e trabalho de campo, então, acho que, se os arquitetos estão se perguntando: quem são as partes interessadas nesse projeto, eles já estão muito atrasados. Se você precisa se perguntar para quem é o seu projeto, você já entendeu tudo errado. A pesquisa em design, software e infraestrutura humanitária em que eu tenho trabalhado, tanto com o anexact office quanto com a cooperativa de propriedade dos trabalhadores User Group, começa atendendo às condições in loco. Onde estamos? O que está acontecendo? O que faz as coisas se moverem? O que faz as coisas pararem?
Isso significa se sentar, ouvir, estar na cidade e fazer parte de suas alegrias e tristezas, de seus potenciais e seus limites. Os designers não são observadores privilegiados! Eles podem fazer parte de uma conversa, fazer parte de uma narrativa, fazer parte do processo, e eles têm algumas habilidades úteis, é claro. Mas, se você não consegue ver uma cidade ou um sistema pelo que eles são, ou seja, como eles funcionam, o que os residentes podem fazer uns com os outros (para fazer referência ao brilhante trabalho de AbdouMaliq Simone), você acaba de volta ao jogo da representação. Há quanto tempo Foucault falou sobre a indignidade de falar pelos outros? No entanto, a arquitetura ainda não captou a indignidade de representar os outros! Se há alguma contribuição que a arquitetura pode fazer, é definitivamente a de ir ao encontro das lutas pela justiça social e ambiental, e pela integridade climática, com humildade – não como um especialista com respostas, mas para ouvir e aprender com os que estão na linha de frente.
IHU On-Line – Quais os limites da arquitetura enquanto disciplina para enfrentar os desafios colocados pelo Antropoceno? Como a multidisciplinaridade pode contribuir nesse sentido?
Etienne Turpin – Cada disciplina é uma herança do Holoceno, portanto, nesse aspecto, a arquitetura é como qualquer outro campo de pesquisa. Agora, vemos as disciplinas competindo umas com as outras sobre quem é o árbitro apropriado do Antropoceno. Incrível, não? De fato, Isabelle Stengers previu esse triste resultado em sua entrevista com Heather Davis, publicada pela Open Humanities Press em Architecture in the Anthropocene [A arquitetura no Antropoceno], em 2013.
Mas agora eu estou longe demais da academia para dar uma resposta adequada, para ser perfeitamente franco. Eu sinceramente não sei como esses debates disciplinares ainda podem persistir, para que fim, com quanta energia desperdiçada e para quê?! Até mesmo a ideia de que a multidisciplinaridade como tal é uma chave de ouro para o bloqueio da complexidade parece um pouco como um slogan neoliberal nos dias de hoje. Não que eu seja contra, mas o que precisamos é de modelos mais ágeis e convincentes de investigação e intervenção, não de um slogan de “vamos todos juntos”.
Em um projeto de software de código aberto que eu ajudei a desenvolver na Indonésia a partir de 2013, a equipe de pesquisa original era composta por mais de 15 disciplinas distintas. Desde então, dezenas de pessoas de outros campos também vieram trabalhar no projeto, apoiaram-no e passaram por ele, e depois por outros projetos ou áreas de pesquisa. Por estar embasada em uma realidade concreta, ela é restringida de tal modo que torna esses vários compromissos epistemológicos valiosos, mas apenas parcialmente. Ninguém pode narrar o projeto inteiro a partir de uma disciplina – engraçado, essa parece ser uma boa maneira de mantê-lo trabalhando, e de mantê-lo trabalhando em conjunto.
Assista ao vídeo, em inglês, How to Make a Report (Como fazer um relatório, em tradução livre):
IHU On-Line – É possível construir alternativas aos dilemas ambientais e sociais originados pelo Antropoceno para além do debate acadêmico? De que maneira pode-se integrar outros interlocutores na discussão, como, por exemplo, as populações atingidas pelas mudanças climáticas?
Etienne Turpin – Sim, eu acho que é possível. Pelo menos, na minha prática, eu trabalho cruzando vários formatos para construir alternativas, porque acredito que seja possível e urgente fazê-lo. Formei-me como filósofo, mas acho que a filosofia pode ser praticada melhor em vários registros em que o pensamento faz parte do conjunto. Como editor (e, ocasionalmente, como escritor), eu trabalho com o setor de publicações porque ainda acredito que os livros (e as ideias que eles transmitem) são consequentes para essa condição que podemos chamar de Antropoceno. Como curador, acho que as exposições ainda são um espaço para desafiar as narrativas culturais dominantes e para reformular os modos de ver o Antropoceno. Como designer que trabalha cruzando o design urbano, o software de código aberto e a infraestrutura humanitária, gosto de pensar no nosso trabalho como anastrófico. Se uma catástrofe é o passado se separando, uma anástrofe é o futuro se unindo. Como podemos fazer design para as convergências do Antropoceno (mudanças climáticas, luta política, migração, conflito etc.), permitindo a colaboração, a cooperação e a criatividade em participantes humanos e não humanos? Esse trabalho não tem a ver com prever o futuro, mas se concentra em projetar uma infraestrutura criteriosa, atentando cuidadosamente para estas trajetórias do Antropoceno.
Veja, em inglês, o Manifesto do Design Anastrófico:
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O Antropoceno é um alerta sobre as ações humanas no planeta. Entrevista especial com Etienne Turpin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU