Por: Vitor Necchi e Patricia Fachin | Edição: Ricardo Machado | 09 Abril 2018
A ideia, amplamente divulgada, de que a democracia é capaz de reduzir as desigualdades – exceto pelos períodos de reconstrução pós-guerra – é rica em exemplos infortúnios, de modo que os modelos democráticos do ocidente são sempre fortemente influenciados por lobbies das elites econômicas. O Brasil e sua complexa realidade parecem sempre fugir dos modelos tradicionais de análise e encontra na Constituição de 1988 o início de um processo que não se realizou por completo. “A queda da desigualdade no Brasil tem, basicamente, dois pontos chaves: a Constituição de 1988; e a implementação das deliberações de 1988 num ambiente em que os partidos estão competindo pelo eleitor de mais baixa renda, porque ele é a maioria e pode decidir uma eleição”, analisa a professora e pesquisadora Marta Arretche, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line.
Contudo, a freada na valorização do salário mínimo, principal política de redução das desigualdades, é efeito dos limites políticos e econômicos, que estancou a possibilidade de se superar a desigualdade crônica que marca a sociedade brasileira. “A despeito de toda a popularidade do Bolsa Família, e o programa foi muito efetivo em reduzir a extrema pobreza no Brasil, ele teve muito pouco impacto sobre a desigualdade de renda”, analisa a entrevistada. “O salário mínimo, atualmente, está próximo a mil reais; se ele atinge 25% do eleitorado, tem um peso grande no funcionamento da economia, e este sim, não só apenas tira as pessoas da pobreza, como tem impacto sobre a desigualdade”, complementa.
Não se pode entender os dilemas da desigualdade no Brasil sem levar em conta a radical desigualdade que nos constituiu enquanto nação, de modo que se impregnou uma dinâmica de superexploração dos miseráveis. “A desigualdade no Brasil foi tão grande, que o bem-estar — não das famílias ricas e da elite — das famílias que estão um pouco melhor depende da miséria dos trabalhadores baixamente qualificados que prestam serviços para eles”, analisa. Isso ajuda a explicar, em parte, de onde vem um ódio sistêmico contra políticas de inclusão social. “Por isso esses [a classe média emergente] se voltam contra essas políticas, daí vem o ódio ao Bolsa Família e às políticas do PT, porque a nossa estrutura de desigualdade, historicamente, foi uma estrutura em que os muito baixamente qualificados levavam vidas miseráveis”, ressalta.
Marta Arretche | Foto: Vitor Necchi - IHU
Marta Arretche é professora de Ciência Política da Universidade de São Paulo - USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi pró-reitora adjunta de pesquisa da USP. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Realizou estágio pós-doutoral no Departamento de Ciência Política do Massachussets Institute of Technology, nos Estados Unidos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Em entrevista recente a senhora disse que a teoria política comparada operava com dois pressupostos teóricos: 1) de que a democracia seria uma condição suficiente para os países entrarem numa trajetória de redução das desigualdades; e 2) que ao se organizarem, os partidos de esquerda vocalizariam as demandas dos eleitores de baixa renda na agenda política. A sua conclusão é de que o aumento das desigualdades demonstra que há problemas com esses dois pressupostos. O que o atual quadro social demonstra sobre esses pressupostos?
Marta Arretche — O que aconteceu com o Brasil nos últimos 30 anos, com a redemocratização e com os governos de esquerda, confirma essa teoria. Houve um aumento substancial do bem-estar, houve uma redução da desigualdade e ela foi importante — não é irrelevante e vou apresentar várias evidências disso — e isso está associado tanto com a democracia, quanto com os governos de esquerda e com o fato de se ter partidos eleitorais competitivos. E o fato de que tivemos uma queda de um governo de esquerda e de que há uma agenda mais conservadora apresentada pelo governo que está no poder, ainda assim não é suficiente para refutar essa tese, porque a reforma mais impopular deste governo, que é a reforma da Previdência, não foi sequer à votação. E as medidas que foram aprovadas não são medidas visivelmente prejudiciais ao eleitorado. Além de tudo, esse governo tem uma baixíssima popularidade e uma baixíssima chance de se reeleger.
No entanto, nas democracias desenvolvidas dos anos 1970 para cá, a despeito do funcionamento e da estabilidade do regime democrático e da presença dos governos de esquerda, a desigualdade vem aumentando; vem aumentando nos países europeus e nos Estados Unidos — os EUA, em termos de índice de Gini, estão muito próximos do Brasil e é uma democracia muito consolidada. Então, o que essas evidências apontam é que, além da democracia e do peso do eleitorado, há outros fatores que afetam as decisões do governo. Para isso há várias hipóteses que a literatura aponta, e as duas mais fortes, sobre as quais ainda sabemos pouco no Brasil, são:
1) em sistemas em que o voto não é obrigatório, os eleitores mais pobres não comparecem às eleições e, portanto, mesmo os partidos menos conservadores não são accountables, não estão procurando votos desses eleitores;
2) os interesses empresariais atuam diretamente no parlamento, comprando legislação, financiando campanhas eleitorais. Nós temos evidências disto no Brasil pelo que a Lava Jato demonstrou — as empresas compravam diretamente Medidas Provisórias - MPs, financiavam as campanhas e depois cobravam a conta ou pagavam propina diretamente para os parlamentares para comprar legislação; por exemplo, uma MP que favorece abertura de concessões ou uma MP que implica em isenções tributárias custa tal valor.
Isso pode acontecer no Brasil, não tínhamos muito conhecimento e estudos sobre isso, mas a Lava Jato deixou bastante claro de que esse mecanismo opera. A despeito disso, no Brasil houve uma queda substancial da desigualdade e foi este parlamento que aprovou esta legislação.
IHU On-Line — Na sua avaliação, a queda da desigualdade no Brasil é um fenômeno que se iniciou ainda nos anos 1990. Como esse processo aconteceu naquele contexto?
Marta Arretche — A partir dos anos 1990 começa a ter uma trajetória consistente de queda da desigualdade no Brasil em várias áreas: na área da desigualdade de renda, no acesso à educação, a serviços de saúde, no acesso à energia elétrica por parte dos mais pobres etc. Em diversas dimensões que não só a renda, a diminuição da distância entre os mais ricos e os mais pobres começou a acontecer, mas o processo é anterior. Uma parte deste processo tem a ver com o que foi aprovado pela Constituição de 1988, que constitucionalizou uma série de direitos sociais e as primeiras evidências disso começaram a acontecer a partir do início dos anos 1990. Essa trajetória é incremental, é lenta, mas é consistente e sistemática a partir dos anos 1990 até 2015, que é quando temos dados para analisar.
A queda da desigualdade no Brasil tem, basicamente, dois pontos chaves: a Constituição de 1988; e a implementação das deliberações de 1988 num ambiente em que os partidos estão competindo pelo eleitor de mais baixa renda, porque ele é a maioria e pode decidir uma eleição.
IHU On-Line — A senhora tem declarado que a política de valorização do salário mínimo a partir de 1998 foi a que mais contribuiu para o enfrentamento das desigualdades no Brasil. Por que a política de aumento do salário mínimo foi a que melhor contribuiu para a superação das desigualdades, na sua avaliação?
Marta Arretche — Por duas razões. Primeiro, com essa afirmação estou querendo dizer que, a despeito de toda a popularidade do Bolsa Família, e o programa foi muito efetivo em reduzir a extrema pobreza no Brasil, ele teve muito pouco impacto sobre a desigualdade de renda. Isso porque embora o Bolsa Família atinja 11 milhões de famílias miseráveis, o seu valor é tão pequeno que ele não afeta as distâncias sociais. Então, se concebermos pobreza como insuficiência de renda e distância como uma relação, o Bolsa Família teve um impacto muito grande na redução da extrema pobreza, mas um impacto quase nulo da redução da desigualdade, basicamente porque seu valor é muito pequeno — famílias ganham em torno de 170 a 240 reais, o que complementa uma renda que já é muito baixa.
O salário mínimo atinge, diretamente, cerca de 25% do eleitorado brasileiro; logo, essa turma pode decidir uma eleição. Não à toa, quando o salário mínimo era negociado no parlamento, ao chegar o momento de fazer o orçamento fiscal do ano seguinte — do qual o salário mínimo era um componente importantíssimo, porque determinava o montante de gasto fiscal do governo —, o Brasil parava para ficar esperando qual seria o valor do salário mínimo, e isso ainda acontece. No entanto, agora existe uma fórmula de cálculo automática, ele não é negociado, de modo que há pouca incerteza em relação a isso.
Até 1994, por conta da inflação, a política de reajuste do salário mínimo era, basicamente, uma política de recuperar as perdas inflacionárias. Portanto, não havia uma política de salário mínimo, e, dada a inflação, o valor de salário mínimo e de todas as rendas eram, mais ou menos, invisíveis ao eleitorado. Quando estabilizou a moeda, em 1994, o valor do salário mínimo ficou visível e o número de beneficiários do salário mínimo começou a crescer. Então, essa política passou a atingir um contingente massivo de pessoas, em especial as mulheres baixamente qualificadas no mercado de trabalho, e esse mecanismo de atingir muita gente — 25% do eleitorado — e de ser uma política altamente visível foi o combustível de um jogo político que alçou o salário mínimo lá para cima.
O salário mínimo, atualmente, está próximo a mil reais; se ele atinge 25% do eleitorado, tem um peso grande no funcionamento da economia, e este sim, não só apenas tira as pessoas da pobreza, como tem impacto sobre a desigualdade. Para termos uma ideia, a razão de renda entre os 5% mais ricos e os 5% mais pobres no Brasil, em 1989, era de 80 vezes; a razão de renda entre esses dois grupos era de 33 vezes, ou seja, a diferença caiu mais do que a metade — 33% ainda é um absurdo, mas caiu de 80. Dado o fato de que há um valor considerável e de que ele atinge 25% do eleitorado — compreende os aposentados e aqueles baixamente qualificados no mercado de trabalho — tem um impacto muito grande na desigualdade de renda.
IHU On–Line - Quais são os desafios em torno do salário mínimo hoje, especialmente se considerarmos que algumas pesquisas, a exemplo das feitas pelo IBGE, sugerem que o valor do salário mínimo deveria ser mais de 2 mil reais?
Marta Arretche — Esse é um problema. Apesar de ser alto, o salário mínimo é insuficiente nos grandes centros — e aqui estamos falando do salário mínimo de um indivíduo, por isso que estou dizendo que o salário mínimo atinge diretamente 25% do eleitorado, mas atinge indiretamente muito mais pessoas — famílias —, que não temos como estimar. Sem contar aqueles que estão esperando se aposentar para ganhar um salário mínimo também. Por isso que é “a” política social, pois tem muita gente olhando para o resultado dessa política. De um lado, o salário mínimo, embora tenha melhorado muito, é mínimo; por outro lado, é possível que o valor do salário mínimo no Brasil tenha atingido tanto seu limite econômico, quanto seu limite político. Por quê?
No caso do limite econômico: o salário mínimo é o salário que é pago, de modo geral, para os que são mais baixamente qualificados pelo mercado de trabalho, e em muitos casos esses trabalhadores não têm produtividade para ganhar esse salário. Então, uma pequena empresa familiar que tenha um empregado recebendo o salário mínimo pode não aguentar, economicamente, pagar o salário e mais os encargos de um trabalhador baixamente produtivo. Na época do pleno emprego, secretárias e trabalhadores menos qualificados, ganhando salário mínimo, tornaram-se extremamente escassos e isso criou uma desorganização no mercado de trabalho baixamente qualificado, porque as pessoas também são baixamente produtivas. Se juntarmos isso aos encargos, e ao que os economistas estão dizendo — há um debate com a publicação recém-lançada do Banco Mundial de que o salário mínimo chegou ao seu pico –, então é possível que, sem aumentos da produtividade e da capacidade produtiva dos trabalhadores, as empresas não aguentem ir muito além desse estágio pagando salário mínimo aos trabalhadores. E o que quer dizer quando o salário mínimo atinge seu limite econômico? As empresas começam a demitir. Se legisla obrigando a contratar pelo valor do salário mínimo, mas as empresas não contratam e o resultado é o desemprego ou a informalidade.
Embora seja desejável que o salário mínimo seja mais alto se pensarmos pelo ângulo do bem-estar do trabalhador, talvez não seja possível se pensarmos pela capacidade de pagamento das empresas que contratam trabalhadores baixamente qualificados, dada a sua baixa produtividade. Portanto, é preciso aumentar a produtividade do trabalhador para poder aumentar os salários. Esse é um problema mesmo e, hoje, a solução não é simples.
De outro lado, é possível também que o valor do salário mínimo tenha atingido seu limite político. Acredito que uma parte da reação dos setores conservadores às políticas do PT e às políticas de inclusão tem a ver com o aumento do salário mínimo. O Brasil é um país em que a maior parte das famílias não pode contar com os serviços públicos, isto é, o funcionamento do orçamento das famílias depende de contratar uma pessoa basicamente qualificada, a muito baixo preço, para cobrir o buraco da dona de casa que vai trabalhar. Então, se os custos desses serviços que ela tem que pagar, basicamente, a uma empregada doméstica forem superiores ao salário que a dona de casa recebe, para ela deixa de ser interessante trabalhar. Desse modo, começa a se criar no orçamento doméstico um grande conflito entre o trabalho fora e o orçamento.
A desigualdade no Brasil foi tão grande que o bem-estar — não das famílias ricas e da elite — das famílias que estão um pouco melhor depende da miséria dos trabalhadores baixamente qualificados que prestam serviços para eles. Quando se tenta melhorar a vida destes de baixo, legislando sobre o salário mínimo e apertando na legislação, se piora a vida daqueles que estão um pouco melhor que isso. Esses que são chamados de classe média, mas que são pessoas que lutam pela vida, para criar os filhos decentemente e para manter a casa funcionando, o bem-estar deles pode significar mal-estar mas para aqueles que estão um pouco acima na escala de renda, mas que não são ricos também. Por isso eles se voltam contra essas políticas, e daí vem o ódio ao Bolsa Família e às políticas do PT, pois a nossa estrutura de desigualdade, historicamente, foi uma estrutura em que os muito baixamente qualificados levavam vidas miseráveis. Então, o aumento do salário mínimo não tem impacto apenas no equilíbrio fiscal do governo, no orçamento das empresas, ele também tem impacto no orçamento das famílias intermediárias. Todos esses são penalizados se o salário mínimo passar de um determinado valor, por isso se voltam contra o modelo.
IHU On-Line — Essas famílias intermediárias têm maior participação no debate?
Marta Arretche — Elas têm mais capacidade de vocalização do que os baixamente qualificados, mas todos votam. Mas, é possível que o valor do salário mínimo tenha atingido o limite político também. Se não tiver crescimento econômico, isso vira um jogo de “cobertor curto”.
IHU On-Line — Embora tenha sido possível reduzir as desigualdades nas duas últimas décadas, a concentração de renda ainda é um fenômeno no Brasil. Por que é difícil mexer na concentração de renda dos mais ricos?
Marta Arretche — É difícil, por exemplo, por essa razão que acabei de descrever. Se deseja melhorar a vida dos muito pobres significativamente, porque se a mudança for insignificante ela não altera em nada. Isso implica um novo rearranjo e os prejudicados não sentam e choram, eles atuam politicamente e começam a se manifestar contra o modelo; acredito que é isso que estamos vivendo no Brasil. Isso se entendermos a concentração de renda como a melhora da renda dos muito de baixo.
É muito difícil melhorar renda se não aumentar a produtividade da economia, por isso que a era petista foi uma era em que todos ganharam sem que ninguém perdesse, porque a economia estava crescendo a uma taxa muito veloz, mas quando a economia está contraindo, isso vira um jogo de soma zero, ou seja, se um ganha, alguém tem que perder, mas também é difícil.
E o terceiro fator, se pensarmos na concentração da renda — a renda que está concentrada nos mais ricos — é que em todo o lugar do mundo é muito difícil de ser combatida, a não ser obter transferência dos mais ricos para os mais pobres. O [Thomas] Piketty, por exemplo, diz que na democracia isso é irrelevante; o que permitiu isso na Europa foi a guerra. Por conta da mobilização de guerra houve perda de patrimônio, aumento da taxação e calote da dívida pública — que é a riqueza privada de quem empresta dinheiro ao governo. Tudo isso é o que reduziu a renda dos mais ricos, e não esse mecanismo democrático de ganhos incrementais que geram reação. O Piketty é claro no livro: não foi a democracia que reduziu a concentração da riqueza, foi a guerra, tanto que isso aconteceu no entreguerras, não aconteceu no funcionamento smooth — termo que ele usa —, no funcionamento suave da democracia.
IHU On-Line — As políticas públicas municipais deveriam ser mais independentes ou é importante que elas se mantenham atreladas ao governo federal? Como isso ajudaria a enfrentar as desigualdades?
Marta Arretche — Esse é outro tema bem controverso. No Brasil, desde a Constituição de 1988 e nesse período democrático, as políticas que tiveram maior impacto sobre o bem-estar do cidadão foram políticas reguladas pelo governo federal ou diretamente executadas pelo governo federal: política previdenciária, do Bolsa Família, do salário mínimo e do seguro-desemprego são diretamente executadas pelo governo federal. Existem políticas que afetam muito o bem-estar das famílias e que são executadas pelos municípios e também pelos estados, mas majoritariamente pelos municípios, que são as políticas de saúde e educação, por exemplo.
Nessas políticas, primeiro, há muitas transferências de recursos dos estados mais ricos para os mais pobres, basicamente os estados superavitários, como São Paulo e o Distrito Federal, que transferem recursos para os outros estados via os sistemas de transferências fiscais. Uma vez feitas as transferências, o governo federal diz que é preciso gastar 25% com educação, e disso, 60% tem que ser com professores em sala de aula; diz que é preciso gastar 15% em saúde, e que as políticas de saúde são essas. O governo federal complementa com os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundebe e complementa os recursos para a saúde.
Tudo isso produziu certa coordenação: produziu uma melhora substantiva nas condições de saúde do Brasil e uma melhora importante na educação, mas ainda tem muito chão pela frente. Mas se cada município fizer o que quiser, a desigualdade e a falta de coordenação aumentam; isso faria com que cada município tivesse sua política de saúde, por exemplo, e teríamos cidadãos submetidos a diferentes regimes em diferentes estados. Isso de certa maneira já acontece; por exemplo, alguns estados brasileiros se destacaram muito na área educacional, como o Ceará e Espírito Santo, que não são estados ricos e que tiveram um desempenho educacional melhor do que o de São Paulo — não é melhor do que SP, é muito melhor, a despeito de serem mais pobres. Também existem algumas coisas nos estados e iniciativas municipais que explicam essas diferenças, mas isso ainda não sabemos muito bem como e por que funciona; no desconhecimento eu ainda prefiro que o governo federal regule essas políticas para produzir certas convergências de resultados.
IHU On-Line — Dado o atual cenário brasileiro, que tipo de medidas seriam necessárias para superar as desigualdades hoje?
Marta Arretche — Essa é a pergunta de um milhão de dólares, quem souber responder a essa pergunta... Acredito que a política de salário mínimo é muito importante e é uma política que deve ser levada com muito cuidado, mas ainda assim admito que há limites econômicos e políticos para seguir subindo indefinidamente o valor do salário mínimo, porque não há como pagar. A política de educação precisa, de fato, ganhar prioridade além do discurso. O nosso desempenho no acesso à educação e na melhora dos indicadores da educação fundamental é razoável, mas a qualidade da educação brasileira ainda é desesperadora, tem muito a ser feito e não é uma tarefa simples. Isso porque não depende de melhores salários – obviamente que não pode excluir melhores salários, mas não é subproduto automático de melhores salários –, ela requer políticas educacionais e temos 5.500 municípios, professores baixamente qualificados, desmotivados, as escolas são ambientes altamente violentos e o Ensino Médio brasileiro está muito aquém do que deveria ser para formar uma mão de obra qualificada para dar os resultados em produtividades que o Brasil precisa.
Portanto, temos muito chão pela frente em termos de qualidade educacional, precisamos acelerar esse desempenho. O nosso sistema de saúde é um sistema que reduz desigualdades, mas apresenta, hoje, graves problemas de financiamento, o sistema está pifando em todo lugar e precisa ser repensado, mesmo o sistema básico, pois voltamos a ter doenças do século XIX — a febre amarela era uma doença erradicada e voltou em ambiente urbano; são mortes banais. Nós precisamos ter uma política para a juventude, o Brasil mata jovens em escala industrial, muito mais do que os países que estão em guerra; os estudos sobre doenças mentais nas periferias das cidades brasileiras mostram que a saúde mental dos jovens e dos adultos das periferias das cidades brasileiras têm o mesmo grau de gravidade dos países que estão em guerra civil há muitos anos, porque nós temos uma guerra civil nas periferias urbanas brasileiras.
Então, a questão da violência que atinge mais do que proporcionalmente os jovens, porque estão submetidos a diferentes regimes, são muito atraídos pelo crime organizado e por diversas ordens de violência, e para além do discurso e de intervenções pontuais em períodos eleitorais. Enfim, a lista do que deve ser prioridade não é pequena, mas essas, possivelmente, são as mais graves. Também é muito fácil cruzar a perna e dizer que isto ou aquilo deve ser feito, mas são políticas muito complexas e de muito difícil implantação, que requerem o apoio e o envolvimento de um exército de prestadores de serviços que perdeu a credibilidade do Estado brasileiro.
IHU On-Line — A Constituição de 1988 prevê um estado de bem-estar social, mas hoje fala-se que não há orçamento para garanti-lo. Como avalia esse discurso? É possível garantir o estado de bem-estar?
Marta Arretche — De fato, dinheiro não dá em árvore e o orçamento tem um limite. Nós somos uma economia de média capacidade, não temos os recursos per capita com que contam as economias ricas, mais desenvolvidas. De fato, teremos que fazer escolhas de prioridades, o orçamento não é infinito e precisamos acabar com essa ilusão de que é possível atender a todas as necessidades, a todos as vontades e a todos os desejos. Portanto, precisamos admitir que há restrições e que restrições implicam fazer escolhas. Por outro lado, no Brasil, o sistema tributário ainda é muito regressivo e tributa mais pesadamente os mais pobres — dado o peso dos impostos indiretos — e não tributa os mais ricos — o que os estudos mostram é que os 5% mais ricos praticamente não pagam impostos no Brasil. Quem sustenta o Imposto de Renda são os trabalhadores que descontam diretamente na fonte, que não têm como se evadir. Quem tem como se evadir se evade, mas também é possível não pagar imposto ganhando muita renda em bases estritamente legais graças às isenções, da possibilidade de quem tem empresas não pagar imposto como pessoa física e uma série de regras de tributação que facilitam a vida dos mais ricos.
Nós temos espaços para aumentar, com certeza, a arrecadação no Brasil; esse é um tema que já está na campanha eleitoral. E, por fim, creio que devemos ter um sistema mais eficiente de avaliação dos resultados das políticas. Algumas políticas que não são eficientes em gerar bem-estar, aumentar produtividade e reduzir a pobreza deveriam ser cortadas. Com isso quero dizer o seguinte: temos um orçamento limitado, certamente temos que reduzir privilégios e cortar gastos, mas há espaço para aumentar a tributação, em particular sobre os mais ricos que não pagam impostos, e melhorar nosso conhecimento sobre o desempenho das políticas para fazer escolhas em bases mais sólidas. O que temos acompanhado é que quem tem maior capacidade de pressão nas decisões acaba sendo beneficiado destas e esses não são, necessariamente, os mais necessitados. Acredito que este será um debate cada vez mais claro no Brasil, e sobretudo em contextos de crise econômica a disputa por recursos fica mais saliente.
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A desvalorização do salário mínimo emperra a redução da desigualdade. Entrevista especial com Marta Arretche - Instituto Humanitas Unisinos - IHU