Por: Patricia Fachin | 18 Outubro 2017
A crise hídrica que atinge a região do rio São Francisco desde 2013, que perpassa os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, atingiu seu ponto mais severo neste ano, diz Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF à IHU On-Line. Segundo ele, na atual situação, a administração da crise tem sido muito complexa, “porque quem está a montante da foz da Bacia Hidrográfica do Alto São Francisco quer reservar mais água, ou seja, manter a água ao máximo nos reservatórios, e quem está a jusante quer que se libere mais água para contornar os efeitos da diminuição das vazões que afetam principalmente as capitações de água para o abastecimento humano e para os perímetros irrigados”.
Além das dificuldades em torno da gestão dos recursos hídricos limitados, Miranda relata que a crise causou um aumento do assoreamento do rio, a intensificação da erosão e impactou diretamente a fauna e a flora aquática, além de ter causados impactos significativos na navegação. “A crise hoje se apresenta com certos contornos dramáticos. Se levarmos em conta fenômenos como a intrusão salina na região do São Francisco, nós temos aí não só crise hídrica, mas também problemas de saúde pública, porque nos municípios que estão próximos à foz já há dificuldades de abastecer a população”, relata.
Na avaliação dele, além das mudanças climáticas, com a redução das chuvas e secas mais intensas, outros fatores têm contribuído para a intensificação da crise hídrica na região, como a exploração desordenada da água subterrânea. “Há um descontrole tanto em Minas Gerais quanto no estado da Bahia, que são os principais contribuintes de água para o São Francisco. Há um descontrole dos avanços das fronteiras agrícolas e da extração indiscriminada tanto de água de superfície quanto de água subterrânea. Acima de tudo, no que diz respeito à água subterrânea, isso está influído duramente na vazão dos rios e afluentes do próprio São Francisco”, informa.
Miranda diz ainda que outra situação preocupante na região é a expansão agrícola no Oeste da Bahia, onde está localizado o aquífero Urucuia, o mais importante para garantir o escoamento da foz da Bacia Hidrográfica do Alto São Francisco. “Talvez ele [o aquífero Urucuia] seja o fator mais decisivo para a administração da crise de vazões do rio São Francisco e de alguns dos seus afluentes. Acima do rio Urucuia está a fronteira em expansão, para o Oeste da Bahia, da plantação de soja, de algodão e de feijão. Não há dúvida de que a agricultura aumenta as possibilidades de crescimento econômico — nós não somos contrários a isso —, mas, evidentemente, essas expansões agrícolas têm que ser feitas dentro da legislação e dentro dos parâmetros da sustentabilidade”, adverte.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Miranda comenta as dificuldades em torno da gestão hídrica do Rio São Francisco, defende que os estados de Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas e Bahia façam uma gestão compartilhada e descentralizada para enfrentar a crise, e comenta as consequências da transposição do Rio São Francisco para a região.
Anivaldo Miranda | Foto: Lula Castello Branco
Anivaldo Miranda é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF, um órgão colegiado, integrado pelo poder público, sociedade civil e empresas usuárias de água, que tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia do São Francisco.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual é a situação hídrica do rio São Francisco neste momento em que se registra uma das crises hídricas mais intensas?
Anivaldo Miranda — A crise se estende desde 2013 por conta de uma estiagem muito prolongada, e a cada ano as vazões e precipitações de chuva são piores, de modo que se chegou a uma situação ainda mais crítica neste ano. Essa situação tem demandado muitos esforços para administrar a crise hídrica. Uma das maiores preocupações neste momento é com o nível dos reservatórios que, a cada dia, fica mais baixo. O reservatório de Sobradinho, por exemplo, está em torno de 4% do seu volume, e o principal esforço é fazer com que ele chegue ao nível zero exatamente no mês de novembro, quando a expectativa é de que comece o período úmido, sem que seja necessário entrar no volume morto antes disso. O mesmo é válido também para o reservatório de Três Marias, que fica em Minas Gerais. Esses dois reservatórios — Três Marias e Sobradinho, que é o maior de todos — são fundamentais nessa estratégia, bem como o reservatório de Itaparica, que fica no médio São Francisco.
A administração dessa crise é muito complexa, porque quem está a montante da foz da Bacia Hidrográfica do Alto São Francisco quer reservar mais água, ou seja, manter a água ao máximo nos reservatórios, e quem está a jusante quer que se libere mais água para contornar os efeitos da diminuição das vazões que afetam principalmente as capitações de água para o abastecimento humano e para os perímetros irrigados. Sobretudo no baixo São Francisco esses efeitos da diminuição das vazões são visíveis: há um aumento do assoreamento do rio, aumento do processo de erosão das margens, um impacto muito grande sobre a fauna e a flora aquática e, também, impactos na navegação, que praticamente está reduzida a barcos de pequeno porte, atrapalhando também a travessia entre as margens.
Então, a crise hoje se apresenta já com certos contornos dramáticos. Se levarmos em conta fenômenos como a intrusão salina na região do São Francisco, nós temos aí não só crise hídrica, mas também problemas de saúde pública, porque nos municípios que estão próximos à foz já há dificuldades de abastecer a população. Entretanto, o Comitê do São Francisco e outras agências públicas estão tomando algumas medidas. No município de Piaçabuçu, em Alagoas, que fica muito próximo à foz, as captações são feitas enquanto a maré está secando, porque assim é possível obter água com qualidade, capaz de ser ingerida pela população. Contudo, esse é um processo que se resume ao tempo das marés, mas essa é a solução que foi encontrada. Para resolver esse problema, o Comitê está investindo na construção de um “tanque pulmão” com grande capacidade de armazenamento de água, porque isso vai assegurar uma reserva capaz de garantir o abastecimento da população do município de Piaçabuçu durante 24 horas sem interrupção. Tudo se passa do lado de Alagoas.
Do lado de Sergipe, algumas comunidades estão sofrendo muito com a crise hídrica, mas algumas soluções estão sendo encaminhadas: a Companhia de Abastecimento do Sergipe, por exemplo, no município de Resina, está fazendo um poço profundo, e coube a Comitê construir uma estrada de 900 metros para dar acesso aos caminhões que utilizarão esse poço profundo. Do lado de Alagoas, enquanto o Comitê fica responsável pela construção do “reservatório pulmão”, a Defesa Civil vai ficar encarregada pela construção de uma adutora que vai carregar água mais a montante. Essas são soluções que resolvem a questão do abastecimento humano, mas o Comitê pretende também financiar um estudo de maior porte como modelagem para avaliar qual é o impacto da intrusão salina não só na água subterrânea, mas também no contexto da vegetação, porque esse fenômeno tem prejudicado a atividade agrícola na foz.
Um pouco mais a montante, algumas captações de água estão sendo, recorrentemente, submetidas a readaptações: o caso mais significativo é o abastecimento da cidade de Aracaju, porque ela fica fora da Bacia do São Francisco, e é abastecida através de uma transposição, ou seja, eles captam a água do São Francisco no município de Propriá, que é uma cidade ribeirinha, e mediante a uma transposição, a Companhia de Água abastece uma população de cerca de um milhão de pessoas na região metropolitana de Aracaju.
Agora, com a redução das vazões em Sobradinho, foi necessário readaptar a captação através de balsas flutuantes, pois havia dificuldade na utilização das bombas. O governo de São Paulo emprestou ao governo de Sergipe algumas bombas que foram usadas no auge da crise do Paraíba do Sul, mas foi só um empréstimo, ou seja, no futuro talvez seja o caso de adquirir bombas permanentes. O Comitê do São Francisco está estudando com o governo do Sergipe a possibilidade de fazer um investimento para a compra desses equipamentos.
Enfim, esses são só exemplos, porque em outros pontos da bacia existem problemas com as vazões que, em tempos normais, variam a partir de Sobradinho de 2300 metros cúbicos por segundo. De 2013 para cá a vasão foi diminuindo de 2300 para 2100, depois para 1000, 900, 800 e agora estamos uma vasão de 550, isto é, com menos da metade da capacidade. Por enquanto, não é uma crise de vazões; é uma crise do nível da água. Então, muitas dessas captações, sobretudo captações para abastecimento, já estão inviabilizadas porque ficaram em perímetros que já estão secos.
IHU On-Line — A transposição do rio São Francisco agrava de algum modo a situação em períodos de crise hídrica como o que se vive agora?
Anivaldo Miranda — Por enquanto a transposição concorre com os outros grupos, mas concorre em um nível discreto, porque por enquanto estão captando água apenas no Eixo Leste, que começou a funcionar, e estão captando cerca de nove metros cúbicos por segundo. Esse Eixo atende parte da Pernambuco e, sobretudo, a Paraíba, na região da cidade de Campina Grande. No Eixo Leste a captação é feita no Lago de Taparica. No Eixo Norte a captação será um pouco mais a montante do rio São Francisco, em Cabrobó, mas ainda estão fazendo alguns testes nessa parte da obra
Do ponto de vista da outorga que foi dada à transposição, recomenda-se que em situações de crise hídrica, quando o projeto da Transposição estiver fazendo suas captações completamente, o total de captações deve ser, no máximo, de 26 metros cúbicos por segundo. Esse número de 26 metros cúbicos por segundo tem algum impacto, mas nada que inviabilize os usos de captação. É claro que a crise das bacias no Nordeste Setentrional é grande, mas a transposição só poderá contar com 26 metros cúbicos por segundo. Isso pode resolver a crise de abastecimento de água para uso humano, entretanto, para outros usos a transposição será praticamente inviável, como o Comitê do São Francisco havia advertido. A questão é que embora a captação do Eixo Leste seja de nove metros cúbicos por segundo, só dois ou três metros cúbicos chegam ao açude de Boqueirão, porque boa parte da água está se perdendo por evaporação e também por desvios no percurso. Esses são problemas que os estados que vão receber a água nas bacias receptoras da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará, terão que administrar. Aí entra uma discussão sobre se o conceito que foi escolhido para fazer esse empreendimento, foi o melhor. O Comitê sempre advertiu que teríamos muito trabalho em administrar a transposição.
Mas, por enquanto, o que efetivamente contribui para o aprofundamento da crise é, além da mudança climática, os fatores que agravam essas mudanças, porque entramos em um século de extremos climáticos, no qual as chuvas serão cada vez mais raras e menos frequentes e distributivas, e as secas serão cada vez mais frequentes e prolongadas. Isso tudo se agrava em função, sobretudo, da exploração desordenada da água subterrânea. Portanto, há um descontrole tanto em Minas Gerais quanto no estado da Bahia, que são os principais contribuintes de água para o São Francisco. Há um descontrole dos avanços das fronteiras agrícolas e da extração indiscriminada tanto de água de superfície quanto de água subterrânea. Acima de tudo, no que diz respeito à água subterrânea, isso está influído duramente na vazão dos rios e afluentes do próprio São Francisco.
Existem rios em Minas Gerais, como o próprio Paracatu, que é o maior contribuinte e o que gera o maior volume de água para o rio São Francisco, que está com trechos em que as pessoas já podem caminhar. A quantidade excessiva de pivôs centrais e a falta de controle sobre a perfuração de poços profundos também têm contribuído para a crise. Além disso há o desmatamento do Cerrado e da Caatinga. Agora estamos começando a sofrer os efeitos de décadas de ocupação desordenada do solo.
Outra situação que nos preocupa muito é a do Oeste da Bahia, que é a região onde fica o aquífero mais importante do escoamento de base do rio São Francisco, o aquífero Urucuia, que é fundamental. Talvez ele seja o fator mais decisivo para a administração da crise de vazões do rio São Francisco e de alguns dos seus afluentes. Acima do rio Urucuia está a fronteira em expansão, para o Oeste da Bahia, da plantação de soja, de algodão e de feijão. Não há dúvida de que a agricultura aumenta as possibilidades de crescimento econômico — nós não somos contrários a isso —, mas, evidentemente, essas expansões agrícolas têm que ser feitas dentro da legislação e dentro dos parâmetros da sustentabilidade.
Os estados precisam — e é isso que o Comitê está defendendo — melhorar suas políticas públicas de gestão de recursos hídricos e, sobretudo, universalizar os instrumentos da gestão hídrica, porque sem esses instrumentos estabelecidos, não vamos controlar essa crise. Portanto, estamos propondo aos estados da Bacia do São Francisco, como Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, e uma pequena parte de Goiás e do Distrito Federal, que aceitem firmar o pacto da legalidade, ou seja, que eles passem a investir seriamente e de forma responsável no estabelecimento dos instrumentos da gestão hídrica na Bacia. Existem ainda muitas sub-bacias que não têm plano de gestão, e não existe nenhum sistema de cobrança pelo uso da água subterrânea.
Grande parte da água da superfície também não tem sistema de cobrança ou acesso de outorga. Os sistemas de outorga não são universalizados e confiáveis, faltam investimentos em pesquisa para que conheçamos melhor a capacidade de carga e de recarga de exploração dos aquíferos.
De outro lado, os Comitês de bacias estão, em certa medida, abandonados, pois não há vontade política de parte dos estados em fortalecer os comitês de bacias hidrográficas. Os comitês são fundamentais agora e no futuro no sentido de articular todos os atores da bacia para o cumprimento dos planos que são aprovados.
Os comitês de bacia são espaços fundamentais para a construção de uma cultura de tolerância entre os diversos usuários de água, tanto pequenos como grandes produtores, pequenos e grandes irrigantes, para agricultura familiar e o agronegócio, para hidrelétricas com irrigação. Eles também melhoram o relacionamento entre populações tradicionais e outros grandes usuários de água, como a indústria, a mineração etc.
Então, os comitês são os únicos espaços, talvez, que podem construir uma gestão de bacia e não uma gestão localizada, corporativa, em que cada tenta resolver seu problema isoladamente em relação aos demais. Nós defendemos a necessidade, por exemplo, de que o estado de Minas Gerais saiba o que o estado de Pernambuco está fazendo, e que a Bahia tenha conhecimento sobre o que Alagoas faz, porque sem essa gestão compartilhada, descentralizada e participativa será muito difícil enfrentar essa crise.
IHU On-Line — Alguns pesquisadores e instituições têm defendido a necessidade de aprovar uma Emenda Constitucional classificando o Cerrado e a Caatinga como patrimônio nacional, porque isso ajudaria a resolver a crise hídrica do São Francisco. Qual é especificamente a importância desses biomas para enfrentar esse problema?
Anivaldo Miranda — O Cerrado — eu ousaria dizer — tem quase tanta importância quando a Floresta Amazônica, porque ele praticamente responde por boa parte da disponibilidade hídrica do Brasil central, e ele é fundamental para a região do Sudeste. O Cerrado é fundamental, por exemplo, para a Bacia do rio Paraíba do Sul, que abastece cidades importantes, como Rio de Janeiro e São Paulo. É fundamental porque Minas Gerais é conhecida como a caixa d’água do Brasil, porque muitas bacias hidrográficas importantes nascem em Minas Gerais, e o Cerrado é quem responde por isso, porque é um dos biomas mais antigos do planeta. Ele é um bioma maravilhoso, mas por suas configurações, é muito vulnerável à questão do desmatamento. Por conta do desmatamento, estão fazendo uma ocupação do Cerrado de forma insana e irresponsável, e os processos que ali ocorrem são criminosos e clandestinos.
O Cerrado e a Caatinga ainda não foram declarados patrimônio nacional. O Brasil continua tratando o seu semiárido como se fosse um deserto, quando ele não é um deserto; ele se transformará em um deserto se o Estado brasileiro, a quem cabe ter um projeto para o semiárido brasileiro, não fizer nada.
No contexto do sistema presidencialista, o Brasil não trabalha com políticas de Estado de longo prazo. Talvez um sistema parlamentarista pudesse fazer isso com mais propriedade. Seja como for, um projeto para o semiárido não existe, mas é viável, porque milhões e milhões de brasileiros dependem desse bioma. Esse bioma tem riquezas que poderão ser utilizadas pelo país inteiro; é uma área de extrema incidência de energia solar. Do ponto de vista energético, através das energias solar e eólica, o semiárido é bastante viável sob vários aspectos, até do ponto de vista agrícola, desde que se façam políticas de preparações para as épocas de grande estiagem. Portanto, o que o Congresso Nacional precisa fazer é uma justiça, já que a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica e o Pantanal foram declarados patrimônios nacionais. A Caatinga e o Cerrado merecem, urgentemente, o mesmo tratamento.
A atual atenção que se dá quase que exclusivamente somente para a Amazônia, deixa na “penumbra” uma situação gravíssima, a da preservação da Caatinga e do Cerrado, porque a Mata Atlântica, de alguma maneira, foi quase que totalmente devastada, e embora hoje ela sofra, existem instrumentos de defesa mais apropriados para ela. No caso da Caatinga e do Cerrado, é preciso partir do que já existe no Congresso, pois já existem muitos projetos de lei que tratam da necessidade de uma lei específica para o Cerrado e para a Caatinga. Ou então, é preciso de projetos de Emenda Constitucional, que são de mais difíceis de aprovação. De todo modo, temos que caminhar paralelamente para que haja uma lei específica, como a Lei da Mata Atlântica, só que uma lei para o Cerrado e uma lei para a Caatinga. Essa é uma das bandeiras de luta do Comitê. Esperamos obter apoio nacional e avançar nesse sentido.
IHU On-Line — Qual é a situação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco? O senhor tem defendido que para que o Plano seja cumprido, é preciso uma parceria entre órgãos públicos, empreendedores da iniciativa privada e os usuários. Em que consiste essa proposta?
Anivaldo Miranda — O Plano foi aprovado no ano passado e é uma revisão de um Plano anterior. Como de dez em dez anos temos que fazer uma revisão do Plano, em 2016 praticamente fizemos um novo Plano. Esse Plano terá vigência até 2026 e nesse interregno pretendemos que ele se transforme em ações concretas e não vire mais um plano que fique na estante. O Comitê da Bacia do São Francisco está tomando várias medidas, principalmente junto aos governos de Estado, para criar uma dinâmica no sentido de que todos se apossem do Plano, porque embora ele seja uma criação do Comitê, ele é um patrimônio da Bacia, dos governos, dos órgãos e da sociedade civil, ainda que o Plano tenha sido construído a partir de uma consulta a cerca de 6 mil pessoas. Então, nossa batalha é para que o Plano seja aplicado.
As metas do Plano, para que ele seja totalmente executado, indicam que a Bacia do São Francisco precisa de 30 bilhões de reais em 2016 para que de fato se possa dizer que foi aplicado um Plano à altura dos desafios necessários. Esse dinheiro não é um dinheiro que não existe, porque o Plano trabalhou com projeções orçamentarias da União. O Comitê do São Francisco também assumiu compromissos com o Plano: a partir da arrecadação de recursos pela cobrança da água bruta e a partir de recursos de outras fontes, o Comitê pretende investir 550 milhões. É claro que esse dinheiro será conseguido a partir da cobrança da água bruta, mas o Comitê está trabalhando de modo que os investimentos sejam feitos tendo em vista o Plano. Além disso, estamos trabalhando para criar uma métrica social capaz de avaliar a cada ano qual é a atividade das nossas ações e dos demais parceiros. O nosso objetivo, no sentido de fazer com que o plano seja conduzido, é estabelecer uma parceria com os governos dos estados e por isso vamos fazer, a partir de janeiro do próximo ano, pelo menos cinco grandes oficinas com os governos do Alagoas, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, para que possamos conjugar o que está no Plano das bacias com o Plano de Recursos Hídricos dos estados. Essas oficinas serão enriquecidas por outros participantes, como as populações tradicionais, e outros setores, porque isso será importante para tornar o Plano viável.
IHU On-Line — Que informações o senhor tem sobre o desenvolvimento da obra do Eixo Norte da transposição do rio São Francisco?
Anivaldo Miranda — Eu soube que estavam começando a fazer os primeiros testes no Eixo Norte, e que a obra está bastante avançada. Teremos uma reunião do Conselho Gestor sobre a transposição na próxima sexta-feira, em Brasília, onde será feito um balanço da obra. De todo modo, acho que ela está se encaminhando para a sua conclusão, e o problema agora, do ponto de vista da transposição, é a gestão das águas, porque o governo federal vai ter que fazer acordos com os governos dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará e Pernambuco para definir como será o pagamento dos serviços que o projeto vai exigir, como o enorme custo do gasto de energia elétrica, a recuperação de manutenção dos açudes que serão reservatórios e que posteriormente serão fundamentais para a manutenção da água, e os sistemas de distribuição da água para os municípios. Ou seja, será preciso fazer outros investimentos e obras complementares após a conclusão do Eixo Norte, os quais serão objeto de diferentes discussões a partir de agora entre o governo federal, via o Ministério da Integração e da Casa
Civil, e os governos dos estados das bacias receptoras. Essas não serão discussões fáceis, especialmente nesse quadro de dificuldade fiscal que os estados estão passando, mas o Comitê da Bacia do São Francisco, como representante da bacia doadora, faz parte desse Conselho e tem o objetivo de garantir que os termos da outorga que foram dados para o canal da transposição sejam respeitados.
Além disso, temos também o objetivo de conscientizar as populações das demais bacias receptoras sobre as dificuldades que ocorrem na bacia doadora, e contribuir para que a gestão das águas da transposição seja feita de maneira sustentável e, sobretudo, obedecendo aos princípios da lei 9433, ou seja, garantindo que a gestão das águas tanto na Bacia do São Francisco quanto nas bacias receptoras seja feita de forma descentralizada, compartilhada e participativa. Agora, é claro que a transposição, mesmo com a finalização das estações elevatórias dos canais, não terminou, porque os estados são encarregados de fazer obras complementares nos canais de captação e distribuição de água, e essas novas obras estão longe de serem concluídas.
O Comitê teve muitas restrições à forma como a obra da transposição foi concebida, e a obra gerou uma grande polêmica no Nordeste, mas como os investimentos foram feitos – a obra iniciou com 4,5 bilhões e no final esse valor dobrou para mais de 8 bilhões - não há mais sentido em ficar questionando a construção da transposição, porque ela já é um fato consumado, mas trata-se agora de fazer com que aquilo que dividiu o Nordeste, hoje possa unir o Nordeste.
Nossa luta agora é pela revitalização do São Francisco, que teve um alento quando o atual governo anunciou que iria retomar o projeto de revitalização, e uma nova concepção foi idealizada e um novo conselho gestor foi idealizado também. Entretanto, as dificuldades financeiras, orçamentarias e fiscais do governo no ano passado jogaram um balde de água fria no projeto, e o ano de 2017 foi praticamente perdido. Nossa expectativa é de que, agora que o país está dando sinais de recuperação da sua economia, no fim do ano o governo possa liderar o processo de reativação do programa de revitalização do São Francisco, para que 2018 não seja um ano perdido como foi 2017. A situação demanda e tem que ser tratada como prioridade, e não dá mais para esperar, porque o nível de degradação na bacia é muito grande.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Anivaldo Miranda — Gostaria de chamar a atenção para o fato de que no ano que vem vamos ter o Fórum Mundial das Águas e vários eventos irão acontecer no país todo. O que experimentamos na Bacia do São Francisco não é muito diferente do que está acontecendo em outras bacias do país. Então, isso nos obriga de fato a compreender, do ponto de vista nacional, que entramos no século XXI e que a sustentabilidade, do ponto de vista dos recursos hídricos, precisa ser perseguida com muito afinco.
Aquilo que é válido para a Bacia do São Francisco é válido para o país todo, porque é preciso investir mais em gestão de recursos hídricos, porque foi se o tempo em que governar era construir obras, como já lembrava o ex-presidente Washington Luís. Essa verdade de que construir significa construir estradas, já se esgotou a muito tempo, e hoje talvez governar seja, sobretudo, fazer gestão do dinheiro público, das obras públicas, porque o Brasil precisa dar uma virada nisso. Já que vamos sediar o Fórum Mundial das Águas, é preciso que se gerencie os recursos hídricos no país todo com mais velocidade e mais seriedade, com a efetivação de planos de bacias, sistemas de outorgas confiáveis, dinheiro para pesquisas sobre recursos hídricos, recuperação de matas ciliares, recargas de aquíferos e, sobretudo, é preciso acabar com essa cultura do desmatamento. Essa tem que ser uma meta fundamental, porque além de estarmos destruindo bancos genéticos, estamos inviabilizando a sustentabilidade do futuro. Esse é o recado que gostaria de dar.
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A crise hídrica do Rio São Francisco - Gestão compartilhada dos recursos hídricos é a saída. Entrevista especial com Anivaldo Miranda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU