06 Outubro 2017
"Estou pronto para afirmar que o poder do trágico, para um cristão reconhecível na narrativa dramática e redentora da cruz, permanece um ponto de entrada vital e encantador para o pensamento e a compreensão teológica - também para os meus alunos, que são certamente tudo, menos tradicionais."
O comentário é de James P. McCartin, membro da Faculdade de Teologia na Fordham University (EUA), ex-Diretor do Centro de Religião e Cultura da Fordham e autor do amplamente elogiado livro Prayers of the Faithful: The Shifting Spiritual Life of American Catholics (Harvard University Press, 2010), publicado por Settimana News, 27-08-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.
Cerca de vinte anos atrás, quando era estudante universitário privilegiado e com mentalidade, pode-se dizer, bastante tradicional, fui apresentado, pela primeira vez, à teologia da libertação latino-americana de Gustavo Gutierrez e Jon Sobrino. Nesse período adquiri uma visão que, ainda hoje, dá forma à minha abordagem teológica: tratar com profundo ceticismo todo teólogo que não possui uma compreensão, também existencial, da trágica natureza do humano viver.
Acreditava profundamente, então, como ainda hoje, que a graça abunda exatamente lá onde impregna o trágico do pecado. Naqueles dias, agora distantes, percebia algo que meus alunos do triênio ainda trazem consigo nos cursos que ensino no frenético e voraz centro da cidade de Nova York - mesmo se decorridas duas longas décadas, abriu-se um enorme abismo geracional, e para os jovens, a linguagem tradicional sobre o pecado e a graça tornou-se alguma coisa de estranha e dificilmente compreensível.
Concedo logo ao leitor/leitora que minha visão e abordagem também devem ser tomadas com o devido ceticismo. Por fim, o panorama teológico, imenso e vertiginosamente multifacetado de hoje não deveria ser julgado apenas com base na perspectiva particular de uma pessoa. Na verdade, a vasta diversidade da teologia, desde a ecológica até a radical ortodoxa, passando pela teologia queer, estimulam-me a vê-la como um multiverso teológico. Digo isto para indicar que minha crítica de julgamento poderia não ser suficientemente complexa.
Não obstante isso, estou pronto para afirmar que o poder do trágico, para um cristão reconhecível na narrativa dramática e redentora da cruz, permanece um ponto de entrada vital e encantador para o pensamento e a compreensão teológica - também para os meus alunos, que são certamente tudo, menos tradicionais.
Acredito que por isso a série de livros de Harry Potter, escritos por J. K. Rowling, representa a mais acessível, talvez a mais maravilhosamente astuta introdução ao mito cristão do pecado e da graça, do sofrimento, do sacrifício de si mesmo, da morte e da ressurreição. Embora sua linguagem não articule tudo isso, meus alunos percebem, instintivamente, na trama tecida por Rowling, desenvolvida de modo desigual, a lembrança profunda, no paciente sofrer de Harry, a livre escolha de uma vida de amor capaz de esvaziar-se de si mesma (em termos teológicos, kenosis), e trazer um raio de redenção para o mundo, embora, inevitavelmente, as consequências do pecado permaneçam.
É também por tudo isso que meus alunos ficam emocionados, quando olham e discutem o filme De hommes et des dieux (Sobre Homens e Deuses, em tradução livre, 2010), que narra a verdadeira história do tormento coletivo na comunidade trapista francesa na Argélia. O filme atinge seu ápice dramático quando os monges, em sua férrea luta, decidem pelo sacrifício de suas vidas, como gesto de solidariedade com os pobres muçulmanos da região, perseguidos por islamitas radicais, durante a guerra civil argelina, na década de 1990.
Tanto a série Harry Potter quanto o filme Des hommes et des dieux exploraram a tragédia, por meio da narração. Seria um erro não compreender a importância disso para as gerações mais novas.
Muito mais que os meus alunos, que não o fazem, eu assumo um olhar crítico em relação às mídias sociais e sua tendência de fazerem os jovens narrarem suas vidas em "tempo real", sem pensar, debilitando as atitudes de autorreflexão e discernimento crítico que, com muito esforço, tento recomendar e inculcar.
Ainda assim, fico encantado de reconhecer e homenagear o fato de que a narração, especialmente a narrativa de si, é parte essencial da construção do significado em nossa contemporaneidade. Estou convencido, por isso, de que os teólogos, que buscam honestamente encontrar um caminho que leve as gerações mais novas ao poder transcendente do amor cristão, devem levar em consideração a possibilidade de incorporar de maneira criativa o narrar e a narração (permitam-me aqui recomendar um livro no prelo da teóloga norte-americana Natalia Emperors Lee, publicado pela editora Orbis, sobre a narrativa na teologia).
É claro que muitos dos meus alunos são afetados pelas narrativas teologicamente permeadas de autossacrifício porque estão interessados e fascinados pela possibilidade de integrar os elementos dessas narrativas em suas próprias vidas.
Os sociólogos nos dizem que uma parte cada vez maior das novas gerações americanas já não veem o cristianismo como uma força moral motriz para suas vidas. No entanto, há algo positivo: muitos desses jovens têm sensibilidade instintiva, embora não particularmente articulada e reflexa, porque o sentido e a autotransformação podem ser encontrados através de um modo de vida dedicado a um serviço de amor e sacrifício.
Que tipo de teologia nossos jovens precisam hoje? Precisam de uma teologia que saiba tratar clara e inequivocamente a trágica e complexa existência humana. Uma teologia que fale de forma criativa e entusiasta, adequando suas formas e estruturas de linguagem, particularmente a narrativa. Uma teologia que seja estimulante e provocativa, intelectual e espiritualmente. Uma teologia que, em última análise, saiba atraí-los para o espaço do mistério do amor, que é o núcleo incandescente seja do cristianismo tradicional, seja do desejo até agora ainda sem nome que flui hoje nos corações de tantos.
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Teologia e o obscuro desejo do coração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU