11 Agosto 2017
Sempre está a ponto de tomar um avião, um ônibus, um carro que a leve onde há um público, uma “plateia” que a aguarda para discutir as diferentes formas da violência contra a mulher. Um auditório brasileiro, guatemalteco, sueco, boliviano, estadunidense ou argentino espera sua renovada visão sobre o campo feminista, a violência machista ou a sociedade toda. Sobre eles, a antropóloga Rita Segato tem algo importante para expor.
Esse estado permanente de pré-embarque faz com que o encontro com Segato sempre gere expectativa: seja diante dos meios de comunicação ou em uma aula universitária. Sua obra foi lida com certa irregularidade. O fato de que tenha três pontos geográficos de referência (Buenos Aires, Tilcara e Brasília) provoca uma leitura interrompida: parte de sua obra só é conhecida em português. Seus livros – ainda que não sejam de difusão massiva – estão cruzando as fronteiras universitárias e começam a ser lidos, especialmente, no contexto da violência de gênero. Há três textos chaves: Las estructuras elementales de la violencia (2003), La nación y sus Otros (2007) e La crítica de la colonialidad en ocho ensayos (2015), publicados por Prometeo. A formação também é muito particular: estudou antropologia na Argentina, etnomusicologia, em Caracas, e se doutorou na Irlanda. Em fins dos anos 1960, encontrou no norte argentino seu espaço próprio.
Nos últimos meses, suas reflexões sobre os inumeráveis feminicídios ocorridos na Argentina e sobre os estupros e estupradores repercutiram no cenário local. Antes, havia entrevistado estupradores na Penitenciária de Brasília. Argumentou que pensar que o estupro é um ato sexual, do campo do erótico, é um erro gigantesco: “o estupro é um crime de poder, uma frustração masculina”.
Precisamente sobre a questão do estupro e do estuprador, Segato afirma que “todas as sociedades produzem estupradores. O estupro é uma ação conhecida em todas as sociedades do mundo. Existe a noção, mas há sociedades onde em muitas gerações nunca houve um caso. Por outro lado, existiram sociedades tribais onde o estupro não é um crime, mas, sim, um castigo. Mas, na realidade, não é cometido. A norma é mais de advertência que positiva. No mundo ameríndio, o estupro é o que se diz que acontecerá com uma mulher que incorre em determinadas faltas. Era como um dizer: ‘virá o homem do saco’. E são sociedades de baixíssima incidência. As sociedades de altíssima incidência, curiosamente, são as sociedades mais racistas, ou seja, nos Estados Unidos, na África do Sul. Há uma estatística recente que diz que nas universidades, uma em cada cinco mulheres sofreu um estupro. E agora, em nosso mundo latino-americano, o estupro está se disseminando entre as estudantes universitárias”. Em um bar de San Telmo desconstrói, questiona e adverte – não sem angústia – o modelo de sociedade cruel imperante.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarin-Revista Ñ, 04-08-2017. A tradução é do Cepat.
O feminismo soma em sua luta fundamental pelos direitos a crise da matriz de masculinidade. Qual é sua opinião?
Eu não gosto de pensar o problema da violência de gênero como um problema entre homens e mulheres. Manifesta-se assim, mas é um problema da sociedade. Em uma conferência que dei recentemente em Gotemburgo, Suécia, expliquei que as relações de gênero são um termômetro. A partir delas é possível ler a história, a economia, toda uma época, é um leitura do caminho histórico. Antes, quando se falava sobre este tema havia uma plateia de mulheres, hoje, entre aqueles que me escrevem, há muitíssimos homens. Ocorre que a maneira como a masculinidade se expressa hoje é extremamente vergonhosa e dolorosa para muitos homens.
Como se expressa essa masculinidade na política latino-americana?
Questionamos por que o multiculturalismo não atingiu os interesses do capital, nem a máquina de acumulação e nem o poder. A paisagem presidencial costuma ser profundamente desigual: de Donald Trump a Mauricio Macri, a paisagem do espaço doméstico presidencial não obedece uma pauta multiculturalista, mas, ao contrário, a da mulher em seu lugar. Isso vem de uma agenda, que é um roteiro. Caso você pegue uma foto presidencial de Trump, de Michel Temer, de Macri, de Enrique Peña Nieto com as primeiras-damas, é a mesma. E ao ser tão regular, aí se suspeita que há um dispositivo, um plano para a sociedade. É um exemplo muito forte da subordinação da figura feminina. Isto ocorreu pelo fundamentalismo cristão que está se apoderando de nosso país. A igreja como uma arregimentação da vida, cujo ícone é a posição da mulher. A História avança no sentido de tomar a mulher como refém para expressar a dominação e o controle.
Como as mulheres validam seus direitos frente aos políticos?
É uma relação de poder e é a primeira lição de poder e de diferença de prestígio. Quando ocorreu o crime contra Micaela, as garotas foram até a Praça de Maio para protestar. Então, falava-se do medo do corpo da mulher ao se colocar sob o olhar público. Isso em minha geração não existiu, o destino da mulher era estar no espaço público. Adquirir uma liberdade. E hoje você vê a prevenção, a prudência, as ameaças, proibições que pesam de maneira fundamentalista em um espaço cristão.
A partir da conscientização que há na sociedade, há mulheres e homens preocupados com esta situação.
Sim, porque a sociedade está sofrendo e não está compreendendo. A plateia que eu tenho é a que reconhece seu sofrimento. Reconhece que quando uma menina como Lucía morre empalada – em um intenso sofrimento –, aí está o ser humano, a sociedade que ainda tem empatia, que não está anulada pelos infinitos exemplos de crueldade aos quais estamos expostos a todo momento. Hoje, estamos expostos a tantas cenas de massacre, que as pessoas não são mais pessoas.
No caso argentino, de onde surge o mandato violento?
É um mandato arcaico, mas dentro de certos limites. Não é só a Argentina. Aqui, há um surto. Os indicadores são os números, a forma da crueldade, de como depositam os corpos. Este ano se saiu do normal. Mas, este sair do normal é algo que existe há muito mais tempo na Colômbia, México, Honduras, Guatemala, El Salvador, Brasil. A diferença entre todos estes países é a maneira como representam a si próprios, o espelho que possuem. Há sociedades que não têm espelho. O Brasil é um país violentíssimo. Em 2016, das cinquenta cidades mais violentas do mundo, 21 eram brasileiras, mas no espelho Brasil se pensa um país pacífico. A Argentina, sim, tem um espelho para se olhar. Aqui, os feminicídios não são necessariamente íntimos. Por exemplo, o feminicídio de Micaela, o de Luciana, não foram íntimos. Uma pessoa agarra a outra que não conhece; ou que viu passar, mas não é de sua intimidade. Aí há uma diferença que precisa ser compreendida.
Neste sentido, poderíamos dizer que o ato violento habilita outro ato violento. Quando há uma visibilidade tão forte, um agressor pode se sentir habilitado para repetir esse ato?
Quando dizemos agressão ou violência sexual estamos pensando em uma libido desatada. É muito perigoso pensar assim. O comum é a resposta à obediência dos homens que lhes exige ‘espetacularizar’ sua potência, exibi-la diante de outros homens. Porque a masculinidade é como um título e se adquire mediante a exibição de algum tipo de potência. Está presente até em Hegel: o senhor é aquele capaz de enfrentar a morte. É adquirir o reconhecimento. O pai diz: “você é um home, filho”; não lhe diz: “você é uma pessoa”. “Isso traz um dano imenso. Diz ao filho: “você é capaz de pegar uma mina” e depois deixá-la, prejudicá-la. O mandato de masculinidade se transforma facilmente em um mandato de crueldade. Torna-se capaz de não sentir e, em alguns casos, é capaz de estuprar. Diante dos outros é um espetáculo. Isso não é para a satisfação pessoal, mas, ao contrário, é como uma maneira de fazer um teste. Esta espetacularização da capacidade de potência, que é a capacidade de violência, que em algumas situações se exacerba, por exemplo, em uma situação de insegurança. Situações em que o homem se vê reduzido em sua potência, ressente-se. Um quadro de ressentimento é violentogênico. E nossos países são países de grande insegurança.
Ao que você se refere?
O crioulo é um sujeito inseguro. A América Latina é um espetáculo de insegurança crioula. O crioulo não sabe quem é diante do europeu e diante do não branco daqui. Eu chamo a isto de posição dobradiça. E essa posição é extremamente violenta porque a todo tempo precisa demonstrar algo. O crioulo não é outra coisa que um branqueado ou em alguns países lhe chamam, agora, de ‘brancóide’. Esse é o sujeito político que funda nossas repúblicas. Esse que é, mas não é, e não é, mas é. Esse sujeito inseguro é extremamente violento. A Bolívia, por exemplo, é o país mais violento de todos. É o único país de todo o continente que conta com mais assassinatos de mulheres que de homens. A porcentagem de feminicídios é maior que 50% de todos os homicídios. Por quê? Porque é um país onde apesar da presidência de Evo, diminuiu a população indígena. Por que, apesar da democratização de gênero e étnica, é um país extremamente feminicida?
E como se cruza com o componente social em cada território?
Não acredito que existam causas únicas. Não é “a vingança masculina porque a mulher conseguiu espaços e uma ascensão social”. Quando cheguei a Jujuy, há cinquenta anos, uma das coisas que mais me impressionaram foi o poderio das mulheres. Tinham uma grande autonomia, eram donas do dinheiro, dos postos de mercado. Tinham poder econômico. Há uns oito anos, esse panorama mudou completamente. As mulheres não têm mais o prestígio social e o controle da riqueza como há cinquenta anos. Não é que com a modernidade, em todos os lugares, a mulher ascendeu porque a modernidade rompeu estruturas comunitárias, distribuições de trabalho.
O feminicídio é um fenômeno desta época?
O feminicídio é moderno, assim como o genocídio. Hannah Arendt, Zygmunt Bauman explicaram como o genocídio precisa da modernidade para poder ser praticado. Porque é uma indústria da morte, uma racionalidade moderna. Antes se vencia um povo e se passava a faca em todos os vencidos. Mas o genocídio, como forma de morte sistemática, burocrática, é moderna. O feminicídio também é de um mundo com Estado e está se ampliando no continente. Então, poderíamos falar de um Estado colonial empresarial, que avança em direção a espaços que ainda não controlava completamente. Na medida em que isso acontece, esses espaços vão se tornando mais violentos e o sintoma dessa violência é a mulher.
Um ato violento habilita outro ato violento? Parece que legitima outra pessoa a repeti-lo...
Essa precariedade da posição masculina é muito mais sentida que a feminina. Porque nós, mulheres, somos mais relacionais, temos uma tecnologia de sociabilidade, menos protocolo e isso é por uma história. Não por uma natureza feminina, porque há mulheres que são masculinas. E, então, nessa precariedade da vida no capitalismo, o sujeito masculino, inclusive porque perde seu emprego, porque não pode continuar estudando, essa potência que o sujeito necessita para ser o provedor, em um imaginário arcaico, ressente-se muito mais. Acredito que a posição masculina se fragiliza diante da precariedade da vida, e precisa fazer esforços maiores, muitas vezes violentos, para se recolocar na posição masculina.
Como a sociedade atua diante destes crimes?
Quantas vezes Angeles Rawson foi assassinada? Na tela da TV, milhares de vezes. A posição do assassino, apesar de ser mostrada como a de um monstro, é potente. Então, há uma ambiguidade, um duplo discurso em relação ao assédio, ao estuprador. É mostrado como um monstro, mas alguém que exerce sua potência, que fez o que quis. E essa dupla mensagem também tem um papel, e a prova é essa tese que fala da mimese violenta, com a quantidade de vezes que se produziu o ato de queimar a mulher. Na Colômbia, existe esse mesmo ato, mas não é com fogo, é com ácido. E lá se reproduz com ácido. Quer dizer que há um efeito mimético da forma como a notícia circula. Para a questão do suicídio houve um pacto midiático sobre como mostrar o suicídio. Não o mostram. É um silêncio. A sociedade não sabe em que posição se encontra o suicídio. O que ocorre com o feminicídio? Acredito que a informação é importante, mas como tratar esse ato de maneira a não o transformar em um espetáculo que leve à emulação?
Você marca uma diferença entre a explicação da violência como um exercício de poder e uma ideia mais complexa que supõe que o homem realiza um ato violento para obter esse poder.
Aquele que ocupa um lugar de poder precisa sempre viver obcecado com a sua reprodução. Se não se reproduz, deixa de existir. Por isso, não se pode ver lucidamente a realidade a partir da posição de poder. Só se vê lucidamente a partir da margem. Porque o poder conta com tal esforço em se reproduzir, reconduzir-se, e também sempre passa por uma incapacidade de exibição, de controle do que se exibe, que precisa reproduzir seus atos de poder, caso contrário, não existe. Uma vez me perguntaram qual era a diferença entre o estupro ou a violência doméstica e pública. Meu trabalho sempre pensou as relações de violência de gênero como políticas. Eu não penso a dimensão do perverso, essa parte libidinal não é meu assunto, porque, além do mais, penso que é minoritária. Acredito que a sociedade em que vivemos está produzindo mais personalidades de estrutura psicopática. Ou seja, de estrutura perversa, que não são psicopatas necessariamente, mas essa personalidade pouca empática, que convém à exploração, está sendo produzida inclusive com os filmes que as crianças veem. Há vinte anos, não víamos na TV ou no cinema cenas de violência como hoje. Estamos expostos a algo que eu chamo de programação ‘neurobélica’ para a baixa empatia: uma programação para estruturas psicopáticas da personalidade, onde o outro está distante, é o soldadinho dos jogos virtuais.
A violência, muitas vezes, apresenta-se como algo alheio porque há um valor político na empatia.
Isso é o que estou dizendo com a “pedagogia da crueldade”. É uma pedagogia a qual se está exposto todos os dias, para que se endureça, para que se pense que o destino daquela pessoa não é o seu. É uma programação que começa nos exércitos. Uma pessoa que chega ao exército, em qualquer país, a primeira coisa que precisa aprender é a se estruturar de forma psicopática, no sentido de que o destino de meu inimigo não é o meu. Essa programação que existia para os exércitos, está sendo passada para toda a sociedade. Se matam você, tudo bem. Mas, nunca a mim. E, no entanto, poderia ser eu. Mas, esse poderia ser eu, que além do mais é muito curioso, porque é uma das bases do cristianismo, não faça ao outro o que não gostaria que fizessem a você, não está na rota de leitura dos evangelhos, nos fundamentalismos cristãos de hoje. Essa parte do humanismo eu a resgato, não só como política, trata-se de uma chave para a sobrevivência da espécie. No entanto, o fundamentalismo o fecha, e cria um “nós” e “os outros”, com uma barreira intransitável.
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A base política das relações de violência de gênero. Entrevista com a antropóloga Rita Segato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU