Por: Vitor Necchi | 10 Fevereiro 2017
Uma das primeiras atitudes do novo prefeito de São Paulo, João Doria, foi um golpe na expressiva e famosa arte urbana da maior metrópole brasileira. Como parte das ações compreendidas no projeto que batizou de Cidade Linda, ele mandou cobrir com tinta cinza o trabalho que grafiteiros realizaram na região da Avenida 23 de Maio. Recebeu apoio, mas a consequência mais visível de sua medida foi uma sucessão de críticas por eliminar da paisagem urbana uma das mais marcantes formas de expressão do mundo contemporâneo e, em grande parte, produzida por pessoas da periferia.
“A produção de street art, ou arte de rua, está dentro do campo de disputa simbólica e visual pelo uso e apropriação do espaço urbano, pela gerência desse espaço”, afirma a crítica de arte Maria Amelia Bulhões, que é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line, ela analisa que a prefeitura, ao entrar nessa disputa no campo simbólico, “causa uma celeuma porque entra como um gerenciador não qualificado – no sentido de que não é oriunda do próprio campo da arte – para administrar, pelo menos interferir, nessa disputa”.
Maria Amelia, ao tratar do campo da arte contemporânea, o caracteriza como muito movediço, pois ele “se movimenta de acordo com o que vai acontecendo”, e a “produção de rua, na medida em que existe uma disputa pelo espaço simbólico da cidade, tensiona o campo artístico”. Conforme a pesquisadora, “é uma relação bastante contraditória, tensa, que envolve transgressão, cooptação e também autoafirmação”. Há também um caráter democrático nessa forma de expressão. “Segmentos da sociedade que não estão sendo ouvidos conseguem, nesses espaços, uma espécie de momento de manifestação”, destaca.
Maria Amelia Bulhões | Foto: Arquivo pessoal
Maria Amelia Bulhões é crítica de arte, professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA e membro do Conselho da Associação Internacional de Crítica de Arte. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, com estágio pós-doutoral na Universidade de Paris I, Sorbonne e na Universidade Politécnica de Valencia, e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Foi diretora do Instituto Cultural Brasil Venezuela, primeira coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS e editora da revista Porto Arte. Dedica-se ao estudo da arte contemporânea no Brasil e na América Latina, sistema da arte e arte na internet. Seus livros, textos, conferências, sites e blogs podem ser acessados aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A decisão do novo prefeito de São Paulo, João Doria, que mandou apagar os grafites da cidade, suscita que questionamentos para o mundo da arte?
Maria Amelia Bulhões – Para o campo da arte, o que suscita é um posicionamento dos elementos da arte em relação a essa circunstância, o que evidencia uma disputa no campo simbólico. A produção de street art, ou arte de rua, é uma produção que está dentro do campo de disputa simbólica e visual pelo uso do espaço urbano, pela apropriação do espaço urbano, pela gerência desse espaço. A prefeitura, entrando nessa disputa, causa uma celeuma porque entra como um gerenciador não qualificado – no sentido de que não é oriunda do próprio campo da arte – a administrar, pelo menos interferir, nessa disputa.
IHU On-Line – O prefeito Doria estabeleceu duas categorias: o grafite ele considera aceitável, por outro lado, condena as pichações e prometeu o rigor da lei e tolerância zero para a turma do pixo. Como a senhora avalia essa postura?
Maria Amelia Bulhões – Dentro do campo da arte, existe uma diferenciação, feita a partir de pesquisadores, do que seria grafite e pichação. Eu mesma estou orientando agora uma aluna que está trabalhando sobre pixação, com x, que é como se autodenomina o grupo paulista. Pichação é o escrito urbano, e grafite seria mais a questão da imagem, do desenho, quase se aproximando de uma pintura mural. Tem a street art, que engloba uma série de outras manifestações, incluindo rap, performance. O tema é bem complexo para fazer catalogações, até porque as pessoas transitam de uma para outra. Essas classificações são mais resultado de trabalho de estudiosos do que uma realidade com limites definidos na sociedade.
IHU On-Line – Não são em todos países que se faz distinção entre grafite e pichação, pois as duas expressões derivam de uma mesma matriz.
Maria Amelia Bulhões – Os trânsitos são muito variáveis. Essas divisões podem ser de pesquisa, mas não de realidade.
IHU On-Line – Quem critica os grafites costuma alegar que eles não são arte. Esta afirmação faz sentido?
Maria Amelia Bulhões – Meu primeiro foco de trabalho, que esteve na minha dissertação de mestrado e na tese de doutorado, está também no meu grupo de pesquisa, é sobre o sistema da arte, considerando o conjunto de atores e instituições que definem o que é arte em determinado momento, em uma sociedade, e estabelece os critérios de validade das práticas. Existem inúmeras outras práticas simbólicas no campo visual que ficam à margem desse sistema da arte. Discutir o que é arte e o que não é arte passa, para mim, pela análise dessa produção dentro do circuito da arte, ou desse sistema da arte.
Hoje existe uma inserção dessa produção – street art, grafite – dentro do campo da arte por instituições e por atores. Então, não há como dizer que isso não é arte hoje. Veja a própria pichação. Na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, houve convite para pichadores se apresentarem. O grafiteiro e pichador Cripta Djan, que trabalha com letras, foi convidado para participar da 7ª Bienal de Berlim, em 2012. Na aceitação dos grafiteiros, vale destacar Os Gêmeos, que foram convidados para pintar uma parede da Tate Gallery, em Londres, entre outros como Eduardo Kobra e Onesto [Alex Hornest], que receberam consagração do circuito artístico no país e no exterior.
O campo da arte contemporânea é muito movediço, ele se movimenta de acordo com o que vai acontecendo. Não acho que sejam circunstâncias em que o grafite esteja à margem. Hoje temos galerias e marchands que trabalham com street art, temos eventos de grafite, temos instituições e particulares que contratam grafiteiros para trabalharem suas paredes. A situação é bem mais complexa do que somente dizer se é arte ou não. Mesmo estando dentro do campo da arte, o grafite tem um nicho que eu chamo de arte fora de si. É uma arte que, mesmo estando à margem, vai se integrando em alguns momentos. Fica numa situação borderline: entra e sai, sem um controle institucional tão forte.
IHU On-Line – E a pichação, onde ela se insere nesta disputa conceitual? Ela tensiona a arte? Desdenha da arte?
Maria Amelia Bulhões – Sim, basicamente ela tensiona a arte. Toda essa produção de rua, na medida em que existe uma disputa pelo espaço simbólico da cidade, tensiona o campo artístico. Por outro lado, ela também retroalimenta o campo artístico, em termos de signos, de linguagem. É uma relação bastante contraditória, tensa, que envolve transgressão, cooptação e também autoafirmação.
IHU On-Line – A turma do pixo não reivindica o estatuto de arte. O que eles querem? Expressão? Insurgência? Identidade? Tomar posse, mesmo que simbolicamente, de um território?
Maria Amelia Bulhões – É uma posse de território. Não acho que os pichadores tenham uma intenção de entrar, necessariamente, no sistema da arte. Apesar de alguns entraram, como o Cripta Djan, mas não é essa a intenção. Vendo alguns vídeos e declarações deles, percebe-se que existe muito mais esta questão de afirmar: a cidade também é nossa.
IHU On-Line – Grafite e pichação são manifestações sobretudo da periferia?
Maria Amelia Bulhões – Sim, preponderantemente, ainda que no grafite, por exigir um pouco mais de competência na construção da imagem, muitos pichadores passam por instituições de arte, cursos, atelier livre. A origem básica, retomando como geral, com exceções, é a periferia. A iconografia da qual ele se alimenta é de periferia.
IHU On-Line - O grafite autorizado não perde sua insurgência natural? Não vira muralismo? Faz sentido pensar em curadoria para grafites?
Maria Amelia Bulhões – Concordo que ele perde sua insurgência. Não vejo com bons olhos essa curadoria de grafite, mas isso tem acontecido. É um risco que o grafite corre. Ele está bastante mais inserido do que a pichação mesmo. Transita numa linha de pintura mural. Para analisarmos essas curadorias de grafite ou institucionalização do grafite, talvez fosse mais interessante pensar exatamente na linha da pintura mural mais contemporânea, representando mais as problemáticas urbanas do mundo contemporâneo, do que quando pensamos no grafite mexicano, que tinha uma fonte muito mais histórica, rural, campesina e indigenista.
IHU On-Line – A palavra vandalismo pode ser aplicada à pichação em algum momento?
Maria Amelia Bulhões – Existe uma perturbação da ordem estabelecida. Essa perturbação pode ser classificada por algumas pessoas como vandalismo. O mais correto seria falar no sentido de criar uma perturbação na ordem estabelecida. É bom pensar também que a arte contemporânea tem se colocado como uma forma de estabelecer perturbações, de questionar, de romper também com a ordem estabelecida. Nesse sentido, nós também estaríamos falando sobre arte contemporânea.
IHU On-Line – Nas ruas, há dois tipos de expressões artísticas: as planejadas pelo poder público e as espontâneas. O que deveria pautar a prefeitura na escolha de obras destinadas às ruas?
Maria Amelia Bulhões – No caso de as prefeituras destinarem obras às ruas, ela tem de passar pelas instâncias do sistema da arte. Na nossa sociedade, são essas instâncias que administram este campo simbólico.
IHU On-Line – Quem compõe este sistema da arte que a senhora refere?
Maria Amelia Bulhões – Atores e instituições do campo da arte em interação. Centros culturais, museus, universidades, institutos de arte, galerias, marchands, artistas, gestores, pesquisadores, professores de arte, críticos, curadores. Eu considero que curador e crítico são a mesma coisa – eu colocaria a figura do crítico de arte. Esse conjunto, que é o sistema da arte, gerencia o campo simbólico, na medida em que ele recebe esta delegação e tem uma tradição, uma história.
Também é um campo que tem muita disputa dentro dele, não estou dizendo que ele seja homogêneo. É um campo dinâmico, em permanente disputa de poder, mas, na nossa sociedade, é a instância mais qualificada para definição de como atuar no espaço urbano oficialmente, de maneira planejada.
IHU On-Line – O que caracteriza a arte da rua?
Maria Amelia Bulhões – Não gostaria de falar em características, mas eu diria que esta arte, não planejada intencionalmente pelas instituições públicas, é uma prática mais perturbadora, que corre mais riscos por não estar institucionalizada. Ela é mais ousada, em alguns momentos inovadoras – não quer dizer que necessariamente sempre, porque a arte da rua, em muitos momentos, se apropria dos códigos da própria arte. Por outro lado, ela dá voz a segmentos da sociedade que não estão sendo ouvidos. Ou melhor, eu não diria que ela dá voz. Segmentos da sociedade que não estão sendo ouvidos conseguem, nesses espaços, uma espécie de momento de manifestação.
IHU On-Line – Por conta dos materiais e dos suportes usados, uma outra característica da arte de rua é a provisoriedade?
Maria Amelia Bulhões – Sim. O transitório faz parte da sua essência e maneira de ser. Inclusive porque, muitas vezes, uns atuam sobre os outros, principalmente a pichação, que às vezes atua sobre o grafite. Existe uma disputa desses dois campos.
IHU On-Line – Alguns grafiteiros ganharam espaços em galerias. A galeria não aprisiona?
Maria Amelia Bulhões – Por um lado, sim, mas a galeria aprisiona também os artistas, não apenas os grafiteiros. A galeria tem suas normas de funcionamento e estabelece critérios que o artista ou grafiteiro vai seguir, se quiser se inserir nesse mercado. Por outro lado, ela também oferece a possibilidade de visibilidade e de remuneração. Tudo no mundo tem duas faces. Não há um absoluto positivo e um absoluto negativo.
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Grafite e pichação se alimentam da iconografia da periferia. Entrevista especial com Maria Amelia Bulhões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU