29 Agosto 2016
“O governo de Michel Temer dá as primeiras passadas, acelerando para o grande salto para trás e a grande queima de estoques. A massa assalariada brasileira está sendo vendida a preços de saldo, com as liquidações iniciais dos programas educativos e sociais. O patrimônio de recursos materiais, como antes, será oferecido como xepa. A repressão à divergência não será tímida. Não há nada a esperar”. Esse é o resumo da obra que será exibida no Brasil nos próximos meses, talvez anos, na avaliação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, professor aposentado de Teoria Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ).
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 29-08-2016.
Em um artigo intitulado “O grande salto para trás de Michel Temer”, publicado em seu blog “Segunda Opinião”, o cientista político prevê dias sombrios para o país e aponta algumas características do bloco que apoia Temer e que pretende implantar uma nova agenda política e econômica no país, sem ser referendada pelo voto popular, com a confirmação da derrubada da presidenta Dilma Rousseff.
Wanderley Guilherme dos Santos fala sobre essa agenda, destacando o seu caráter profundamente antinacional. Para ele, o movimento golpista pretende recolocar o Brasil no fluxo normal das relações do capitalismo que havia sido interrompido com a eleição de Lula em 2002. “O que vai acontecer agora, e já começou a acontecer, como tem ocorrido em várias democracias sociais no mundo inteiro, uma redefinição programática drástico dos contratos de solidariedade social com uma hegemonia desabrida da lógica do interesse do capital”, assinala. Para tanto, acrescenta, a esquerda foi expulsa do jogo político legal por algum tempo. “Eles não deixarão Lula ganhar a eleição em 2018 em hipótese alguma. Não sei como vão fazer, mas não deixarão”, diz, advertindo que a tentativa de prisão do ex-presidente Lula é uma possibilidade real neste cenário.
Eis a entrevista.
Como você definiria a atual situação política do país e, mais especificamente, o que está acontecendo no Senado nos últimos dias, com o julgamento do impeachment da presidenta Dilma Rousseff?
Eu não tenho acompanhado o Senado e nem o Supremo Tribunal Federal porque, já há algum tempo, tenho a convicção de que está tudo essencialmente resolvido. É uma peça cuja primeira montagem, para a minha sensibilidade, teve alguma emoção. Agora, virou algo mecânico. Por isso não estou acompanhando o que ocorre no Senado. Não vai daí nenhuma depreciação das pessoas. Elas estão cumprindo o protocolo, mas, no fundo, todos sabem que está resolvido.
Com a confirmação do afastamento de Dilma, quais podem ser as repercussões políticas e sociais no país?
Acho que ocorrerão desdobramentos e aprofundamentos do telos, da finalidade deste movimento que pretende recolocar o Brasil no fluxo normal das relações do capitalismo que havia sido interrompido com a eleição de Lula em 2002. A inserção do Brasil no sistema capitalista evoluiu muito durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, quando foram construídos laços explícitos com o modelo internacional. Previamente a isso, havia uma indefinição sobre o rumo que o país iria tomar. Mesmo durante o período militar, havia uma disputa permanente entre os nacionalistas e os mais, digamos cosmopolitas. Isso foi resolvido, primeiro, com a vitória de Collor e, depois, com a de Fernando Henrique, quando tivemos oito anos de ajustamento da dinâmica brasileira ao modelo capitalista internacional. Isso foi interrompido em 2002.
O que vai acontecer agora, e já começou a acontecer, como tem ocorrido em várias democracias sociais no mundo inteiro, uma redefinição programática drástico dos contratos de solidariedade social com uma hegemonia desabrida da lógica do interesse do capital. Esse processo já está em curso.
Na sua opinião, pode ocorrer uma reação na sociedade a esse processo, especialmente entre os setores que devem ser mais atingidos por essa redefinição programática? Há uma aparente calmaria na sociedade hoje, considerando a gravidade de tudo o que está acontecendo. O que essa calmaria expressa? Apatia? Indiferença?
Acredito que temos aí uma composição de percepções. Em primeiro lugar, há o reconhecimento da falta de recursos. Os assalariados, de modo geral, com a ameaça de desemprego, estão muito pouco dispostos a participar de manifestações com pautas universais, generalizantes. Só farão isso por questões específicas. Essa postura obedece a razões materiais compreensíveis. Em segundo lugar, por uma avaliação, na minha opinião bastante sensata também, de que esse esquema de redefinição programática e de reajustamento reacionário é muito forte e pouco vulnerável a pressões externas. Ele tem algumas instabilidades, como essa briga agora entre Gilmar Mendes e o Ministério Público Federal, mas elas não transbordarão para uma associação com quem está de fora. Assim, acredito que essa aparente apatia não é, na verdade, uma apatia, mas sim uma avaliação bastante pessimista, porém racional.
Em que medida a Constituição de 1988 está sendo afetada pelo que está acontecendo agora no Brasil?
A Constituição, propriamente, não está sendo atingida. O texto da Constituição consagra uma série de votos de boa vontade. O que aconteceu, de 2002 até aqui, foi uma tradução desses votos constitucionais em políticas específicas sérias e sistemáticas. Como essas intervenções sociais não foram constitucionalizadas, como ocorreu, por exemplo, com a Consolidação das Leis do Trabalho, elas ficaram muito vulneráveis a mudanças ministeriais e de governo. Então, o que está ocorrendo agora é um desmanche das políticas sociais construídas a partir de 2002 e a instalação de uma forma diferente de ler os votos constitucionais que não são específicos, mas sim declarações de intenções. O que está sendo atingido é a gramática que traduzia essas declarações de intenções em políticas sociais específicas.
Qual é, na sua avaliação, a capacidade do PT e da esquerda brasileira de um modo geral, de resistir a esse processo e de enfrentar o período que se abre agora na história do país?
Há um trabalho que vem sendo realizado há alguns anos junto ao subconsciente da sociedade para cultivar a impressão de que tudo o que vinha sendo feito desde 2002 era algo paliativo, populista e maligno para comprar o apoio das classes mais desfavorecidas. Foram anos de condicionamento da subjetividade nacional e grande parte dela ficou bastante hesitante no que pensar diante de uma lava jato. Não obstante a execução efetiva dos procedimentos legais que até agora condenaram empresários, burocratas, marqueteiros e alguns políticos, o único grande nome do PT condenado neste processo é o Vaccari (João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do partido).
Desde o início da Lava Jato, os vazamentos, delações, declarações são sempre em relação ao PT. Por isso não cessa a Lava Jato. Toda semana tem uma ameaça nova sobre a prisão de fulano ou de sicrano. E não acontece. Não acontece porque não tem base e as coisas não colam. Há alguns meses, o Lula seria preso por causa do sítio em Atibaia ou por um apartamento no Guarujá. Isso era martelado diariamente como se fosse verdadeiro e suficiente para tornar alguém incomunicável. A Lava Jato colheu os frutos desses 13 anos de cultivo de uma subjetividade disposta a aceitar determinadas coisas. E a devastação produzida por isso foi muito grande. A imensa maioria das forças de esquerda não tem nada a ver com o número de pessoas denunciadas e condenadas pela Lava Jato. Há uma discrepância absoluta aí e ninguém está se dando conta disso.
Há dois processos em curso. Há um processo teatral e um processo real. Os personagens reais estão lá na lista de denunciados e sentenciados pela Lava Jato, da qual não constam políticos do PT, com exceção de Vaccari e Delcídio, que era um recém-chegado ao partido. A Lava Jato continua produzindo essa devastação na esquerda.
Então, é natural que o eleitorado de esquerda esteja, não digo intimidado, mas aguardando os acontecimentos, pois foi colocado sobre seus representantes um véu generalizado de suspeição, o que faz com que ninguém se arrisque a por a mão no fogo por ninguém. A situação de meio paralisia que vemos hoje é uma situação de intimidação. Tudo contribui para um curto e médio prazo não muito róseo para a esquerda brasileira.
Você acredita que a Lava Jato, uma vez confirmado o afastamento da presidenta Dilma, tende a terminar?
Não. Pode até ser que eles tenham pensado nisso em algum momento do processo, mas acho que tomaram gosto pela coisa. É um poder que, agora, o Gilmar Mendes identificou. É um poder excepcional esse de ter informações sigilosas sobre as pessoas, de saber quem faz o quê, em um contexto em que acusação e difamação se confundem. É um poder tirânico, aparentemente dentro da lei. Eu duvido que isso termine tão cedo.
Em que medida esse bloco que está apoiando Temer e a derrubada da Dilma é um bloco coeso e sólido, considerando especialmente as relações entre PMDB e PSDB?
Pode haver algumas rusgas internas, mas acho que o bloco reacionário é sólido. A esquerda foi expulsa do jogo político legal por algum tempo. Lamento, mas eu leio o que está escrito. Posso estar lendo errado, mas tento ler o que está escrito.
Como avalia a possibilidade do movimento sindical e dos movimentos sociais resistirem à agenda de políticas defendidas pelo bloco político e social de Temer, que inclui propostas como a flexibilização da CLT e a precarização de direitos?
Os movimentos sociais podem resistir um pouco, mas dentro do sistema político legal atual, lá entre eles, a situação não é tão fácil assim. Nem todos são reacionários de alfa a ômega. Há representantes dentro do Legislativo e da burocracia que tem interesses a defender e estão envolvidos com uma série de políticas. Então, acho que não será tão fácil para eles e não cumprirão 100 por cento do que gostariam os mais radicais deles, mas isso por conta de resistências dentro do próprio bloco deles. Esse bloco é muito sólido no seu veto à esquerda. O consenso básico deles é: esquerda fora. Esse é o denominador comum que os unifica.
Tudo isso que estou dizendo não significa que nós vamos ficar olhando para tudo isso de braços cruzados, sem fazer nada. O que estou fazendo é procurar ver essa conjuntura com um olhar realista, inclusive para não criar expectativas falsas. As lideranças da esquerda não podem ficar levantando expectativas falsas que sabem que não poderão cumprir. Isso é ruim. O que não quer dizer que vamos ficar parados. Nós ficamos parados durante a ditadura? Não e tampouco ficaremos parados agora. Na ditadura, não acreditávamos que, em 48 horas, iríamos derrubar os generais. Nem por isso ficamos parados.
Em certo sentido, o golpe atual é pior que o de 64, pois tem um compromisso antinacional e reacionário muito mais violento que o dos militares daquela época. Estes tinham uma seção autoritária, mas comprometida com interesses nacionalistas. Não é o caso agora. Cerca de 90% desse bloco que apoia Temer é profundamente antinacional. Isso não está acontecendo só aqui, vem acontecendo pelo mundo inteiro depois da crise de 2008.
Você vê alguma possibilidade de Lula vencer a eleição em 2018 e retornar ao governo?
Eles não deixarão Lula ganhar essa eleição em hipótese alguma. Não sei como vão fazer, mas não deixarão. A esquerda não ganhará a eleição em 2018 de jeito nenhum. O que não quer dizer que a gente não vá mostrar a cara. Dependendo do andar da carruagem e se as eleições fossem livres, hoje eu acho que eles perderiam. O governo Temer é muito ruim e está afetando todo mundo. Se houvesse uma eleição para valer, eles perderiam. Como é que eles vão fazer eu não sei. O compromisso que eles estão assumindo, em nível nacional e internacional, é de tal envergadura que eles não podem perder a eleição em 2018.
Na sua opinião, o tema da prisão de Lula ainda é uma possibilidade?
Acho que sim. Estão preparando o ambiente e o farão quando avaliarem que isso provocará apenas alguns protestos impotentes. Há um ano, eles não fariam, pois não daria certo. Eles não estão para brincadeira e vêm trabalhando sistematicamente para “acostumar” a opinião pública com a ideia da prisão de Lula. Eles vêm realizando sucessivas ameaças, às quais reagimos, para ir criando o clima. A ideia é que, ao longo dessas sucessivas ameaças, a nossa reação vá perdendo força na sociedade.
Como definiria a atuação do STF neste processo? Há setores do Supremo que fazem parte orgânica desse bloco de Temer?
Sim, fazem. A maioria do Supremo é servil. Os que não são, se acomodam e se acovardam. Só esboçam alguma reação em coisas secundárias. Na hora de decidir sobre temas essenciais, isso desaparece.
Outra instituição que vem sendo apontada como uma protagonista do golpe é a chamada “grande mídia”. Como definiria o papel desse setor?
É claro que também faz parte desse mesmo bloco. Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Esse encontro entre Legislativo, Judiciário, Supremo, empresariado e mídia é uma circunstância que aconteceu. Não é fácil de acontecer, mas aconteceu. Acho que nem foi o resultado de uma coisa totalmente planejada, pois é muito difícil planejar algo dessa natureza. Mas acontece e, quando acontece, eles têm consciência de que aconteceu. Eles sabem o que aconteceu e, por isso, estão à vontade para cometer as maiores barbaridades como se fossem verdades. Hoje, se alguém ligado à esquerda entra com um habeas corpus ou algo do gênero no Supremo, eles negarão o pedido. Pode parecer exagerado, mas é isso mesmo. O que está acontecendo não é brincadeira. A gente esquece como isso tudo começou. Há alguns anos, o que estamos vendo agora era algo impensável. Hoje acontece como se fosse algo normal.
Considerando o bloco político social que apoia Temer hoje é possível fazer uma comparação com aquele bloco que apoiou o golpe de 64?
Não, é uma realidade bem diferente. Em 64, não havia uma sociedade organizada e diversificada como hoje. Os militares obtiveram uma maioria conjuntural, mas depois as coisas foram ficando mais complicadas. Não tem nada a ver com 64. Como disse, acho que o que acontece agora, em certo sentido, é pior em função do caráter profundamente antinacional desse bloco.
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‘Governo Temer é profundamente antinacional. É pior que 64’. Entrevista com Wanderley Guilherme dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU