06 Julho 2016
“Tanto na ascensão social quanto no crime, há uma expectativa de valorização pelo consumo, só que, obviamente, de formas muito diferentes, porque no crime isso ganha uma dimensão exacerbada, já que a ostentação é uma forma de exercer a superioridade social entre os mesmos pares”, afirma a cientista política.
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“Por um lado, reconhece-se entre os jovens um processo de identificação de interesses entre si e com as suas referências em comum, tanto sociais como em relação à periferia. Por outro, fez-se também uma perspectiva individualizante que, no sentido oposto, articula e identifica seus interesses com os da classe média, desfazendo qualquer posição conflitante entre ambos os grupos sociais. Este movimento dúplice respondeu às necessidades e conflitos vividos pelos jovens a respeito da busca por melhorar a vida material, alcançar estabilidade e segurança, por um lado, e de conseguir status ou supremacia social por meio da valorização individual, por outro, que leva à negação e/ou restrição das referências comuns. Ou seja, por aqueles que estão em busca da ascensão social via o caminho do trabalho e não necessariamente permanecem ligados aos interesses do próprio grupo social; ao contrário, às vezes, ocorre um processo de desvalorização do próprio grupo para aderir a uma identificação, por exemplo, com a classe média, ou com aqueles que estão ligados ao crime, no sentido de ostentar o consumo mobilizando estereótipos de riqueza”, relata.
De acordo com Thais, esse fenômeno tem sido recorrente nas periferias de São Paulo, onde o consumo figura as expectativas de integração e valorização social dos membros das comunidades. Autora da tese de doutorado "Crime, Trabalho e Política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo", ela reflete sobre as expectativas de vida dos jovens que vivem nas periferias em relação aos projetos de vida de seus pais e avós e frisa que “há uma mudança fundamental de expectativa entre os mais pobres”. Enquanto as gerações passadas tiveram seus projetos de vida associados à migração do campo para a cidade e foram empregados no setor industrial, “os obstáculos a serem superados pelos jovens se ligam ao processo sócio-histórico de ‘desmanche’ neoliberal, que retirou do horizonte a perspectiva do trabalho estável na indústria e de integração social para os mais pobres e colocou para as novas gerações um excludente horizonte de participação no moderno mercado de consumo sem, no entanto, lhes outorgar condições materiais”. É também nesse contexto, diz ela, " que se dão as contradições do modelo de transformação social do lulismo nos anos 2000, que reforçou o o contingente de trabalhadores com carteira assinada na base da pirâmide e, de outro, os salários são baixos e as condições de trabalho precárias”.
Junto com essa mudança de perspectiva, explica, houve também uma estruturação da economia do tráfico na periferia da cidade nos anos 1980 e 1990 e a organização dos negócios ilícitos – narcotráfico, roubos e furtos – na primeira década dos anos 2000. Com isso, menciona, se acendeu o dilema para os jovens entre se envolver no crime ou seguir o caminho do trabalho.
Na avaliação da pesquisadora, o movimento que melhor exprimiu a exclusão social e as expectativas postas para essa nova geração é o chamado "rolezinho", “que expressa o desejo desses jovens de participar dos shoppings, de passear, de ter acesso a lazer e, ao mesmo tempo, revela a exclusão levada quase ao paroxismo quando se acionam todos os dispositivos de controle em nome da ordem e os jovens dos rolezinhos são expulsos pelos seguranças privados, pela Polícia Militar e são figurados como bandidos na mídia”. Para ela, hoje “há uma dificuldade de apresentar um projeto que contribua para aproveitar esse movimento espontâneo dos jovens, como o dos rolezinhos ou outros que têm acontecido, e que vão no sentido de reivindicar o urbano, a própria cidade. Não há um projeto que torne esse movimento espontâneo que indica certa autonomia dos jovens da periferia em algo progressivo, de organização política".
Thais Pavez é doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - De que modo os jovens da periferia, entrevistados na sua pesquisa, pensam a política e os partidos?
Thais Pavez – A tese mostrou que entre os jovens que já tinham participado das eleições – trabalhei com jovens entre 16 e 24 anos de idade da Zona Norte da cidade de São Paulo – havia uma relação entre o comportamento do grupo familiar deles e o seu próprio, ou seja, havia uma centralidade da referência social ou do seu meio social imediato para a escolha dos candidatos. Essas referências apontavam para a escolha de candidatos do PT nas eleições para o Executivo e que vem de uma alteração no comportamento eleitoral dos mais pobres a partir do segundo mandato de Lula. Os jovens da geração lulista se encontravam num contexto social de forte preferência por candidatos do Partido dos Trabalhadores - PT, sobretudo nas eleições para presidente e prefeito. As referências apareciam de forma difusa nas falas dos jovens, ou seja, não necessariamente de forma organizada e coerente, e mostravam uma valorização das melhorias que o governo do PT tinha realizado e, de certo modo, estavam presentes na forma de pensar a respeito das eleições. Portanto, por conta da preocupação que os governos do PT tinham com os pobres, esses jovens acabavam vinculando o partido aos seus interesses, o que contrastava com os grupos sociais que eles associavam ao PSDB.
Ao PSDB associavam, por exemplo, a classe média e os grupos que moravam nas áreas ricas das cidades, e também os funcionários públicos, especificamente os professores, por conta da rede de ensino estadual. Havia, também, um certo rechaço ao PSDB por conta da crítica que eles tinham ao sistema prisional e à Polícia Militar. Muitos desses jovens tinham parentes, familiares ou companheiros presos, ou seja, conheciam muito mais de perto a realidade das prisões e por isso tinham uma forte crítica à superlotação, ao encarceramento massivo, e também à violência e assédio cotidiano da Polícia Militar, o que chegou a deflagrar as queimas de ônibus na periferia. Essa percepção de que o PT se preocupava com os mais pobres também foi expressa na valorização do governo da Marta Suplicy em São Paulo, entre 2001 e 2005, no qual houve uma melhoria nas condições de existência na periferia.
Além do PT e do PSDB, o Partido Verde - PV também aparecia nas referências deles. Diferentemente do PSDB e do PT, havia uma certa indefinição a respeito dos grupos sociais que votavam no PV, pois as pautas desse partido identificadas pelos jovens não estavam diretamente ligadas a questões sociais e redistributivas, ao invés disso, respondiam a temas como meio ambiente. Na referência à questão do meio ambiente, vinham atrelados desejos por melhorias urbanas, como parques e ciclovias.
A referência social vs. a crítica social
Essa referência social, em especial da família, se traduzia numa pressão muito forte, que influenciava na escolha dos candidatos e que aumentou nas eleições de 2014, quando começou a se manifestar a crise do lulismo. De um lado, essa pressão os aproximava das suas referências e, de outro, eles mostravam um descontentamento muito forte com relação à política. Quando esse descontentamento aparecia, eles faziam um movimento contrário e se afastavam das suas referências sociais.
Diferente da narrativa construída em torno do PT e da identificação como “pobres”, nesse caso, surgia o sentimento de descaso que mobilizava um voto de indignação e oposição direta à opção sinalizada pelo grupo social, portanto, essa relação com o partido se invertia e se tornava negativa. Ou seja, suas preferências se voltavam para o candidato com mais possiblidades de derrotar a candidata do PT, que no caso, era a Presidente Dilma Rousseff. No primeiro turno, foi a candidata Marina Silva (PSB) e, no segundo, o Aécio Neves (PSDB). Essa opção pelo melhor rival revela a escolha do voto pela negação da própria referência.
Ocorria uma espécie de desautorização das referências sociais diante da ausência de políticas de lazer e cultura no seu bairro, por exemplo. Nesse caso, as opiniões dos jovens eram tomadas pelo desencanto e pela contestação da opinião sobre os aspectos positivos do governo Lula, mais generalizada no seu ambiente social. A espera pela construção de espaços de lazer era uma forte demanda entre os jovens, que não enxergavam perspectivas nesse sentido. Inclusive, eles mostravam que as decisões políticas do governo municipal apontavam, justamente, num sentido contrário. Nessa perspectiva mais desesperançosa, cogitava-se ou, de fato, votava-se em branco como expressão de apatia e diante da certeza de que sua própria ação política em nada mudaria a realidade.
Diante da possibilidade do voto em branco "por falta de opção" ou da escolha de um candidato que se opõe à preferência do grupo, a lembrança da ex-prefeita Marta Suplicy surge nesses trechos como uma figura solta, descontextualizada do seu partido político (PT), por sobre o resto dos políticos que se mostram de forma homogênea: descumpridores das promessas e indiferentes às suas necessidades. O processo de homogeneização dos políticos é sempre acompanhado pela desqualificação e desvalorização dos mesmos, chamados de pilantras, safados, ladrões etc. Para os jovens, Marta Suplicy "fez" bastante pelo "povo", e apenas esta figura levaria o votos deles caso voltasse a se candidatar. A dificuldade de lembrança da própria escolha em outros candidatos, quando eram indagados a respeito das escolhas em outras eleições, insere-se nesse contexto de apatia e desvalorização generalizada e contrasta com a rápida referência à gestão de Marta, sobre a qual relacionam e especificam os programas sociais. A figura isolada dela, portanto, contrasta com a homogeneização em que a diferença entre partidos e a referência ao comportamento e à preferência eleitoral do grupo social desaparece. Sob o rótulo de "povo", há um deslocamento da confiança no seu ambiente social para a figura personalizada da política.
O palhaço "Tiririca" figura esse descontentamento em relação à política e, talvez por isso, este candidato descontextualizado de um partido político tenha obtido votações meteóricas. O bordão da sua campanha, muito citado pelos jovens, representava o sentimento da impossibilidade de mudança da sua situação social: "Pior do que tá não fica, vote Tiririca". Para os jovens, o palhaço expressava uma verdade a respeito da realidade e ainda entre risos revelava seu desejo de destruir o centro da truculência e do poder: Brasília. Essa afirmação me lembrou aquela expressão “a alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo" que traz à tona um desejo mais contido de tumulto, confusão e destruição que escapa no riso e no chiste do palhaço. A relação entre a "palhaçada" e a política era comum na referência dos jovens. Por outro lado, enquanto o voto em branco representava uma apatia em relação às votações, a intenção de não votar ou anular o voto aparecia como uma ideia coletiva de inviabilizar as eleições e, nesse sentido, era uma proposta de trazer para a margem o próprio "sistema" e de recusar o processo eleitoral. Voto nulo e/ou a ausência do processo eleitoral representam nesta visão uma forma de rechaçar o "sistema" e a "palhaçada", que acaba representando a impossibilidade do uso do poder político para melhorar a vida dos jovens. Também se apresentou como uma forma de "dar o troco" e envergonhar os políticos.
Reivindicações por espaços de lazer
É interessante que essa reivindicação por espaços de lazer tem a ver com uma demanda muito forte por espaços da cidade, a qual aparecia em algumas ações políticas ou de movimentos mais espontâneos de autonomia desses jovens que vêm de baixo, como os rolezinhos, ou as idas massivas deles à Virada Cultural no centro da cidade ou ao parque Ibirapuera. Então, as lutas das classes populares não se restringem apenas às lutas salariais. Também percebi que há uma força motora nessas ações coletivas e autônomas que apresentam uma abertura para o conflito ou ao menos para a tensão social, a qual tem a ver com essas outras questões ligadas aos espaços urbanos. A geração dos pais desses jovens participou da luta por melhorias da infraestrutura urbana na periferia. O que me parece uma novidade é essa reivindicação mais ampla da cidade, para além da "fronteira" da periferia. Eles apontavam que além do comércio e transportes como o metrô, as áreas mais ricas têm espaços nas calçadas, ciclovias e parques que se traduzem num "benefício de vida melhor". O elemento "verde" e a presença de ciclovias eram aspectos que distinguiam radicalmente uma parte da cidade da outra, intensificando o sentimento de exclusão dos jovens.
IHU On-Line - Qual é a visão de mundo desses jovens e de que modo essa visão teve influência no posicionamento deles nas eleições de 2014? Como eles estavam compreendendo o momento político que o Brasil vivia em 2014? Eles se dividiram entre votar no PT e na Marina num primeiro momento?
Thais Pavez – As eleições de 2014 mostraram-se propícias, dado o caráter acirrado do pleito, para analisar a hipótese das pressões sociais opostas e as consequências políticas conflitantes postas no ambiente social dos jovens. A candidata Dilma (PT) entrou no pleito eleitoral num contexto de tensões sociais após as manifestações de junho que expressaram uma série de descontentamentos com o governo e num contexto de desaceleração de melhorias dos indicadores sociais que, como vimos, se traduzia num grande incômodo por parte das classes populares com seu governo, quando comparada a Lula. Agregavam-se a isso as críticas e manifestações contra a Copa do Mundo no Brasil no mesmo ano das eleições, e no decorrer da campanha o apontamento do esquema de corrupção da Petrobras, que envolvia favorecimentos ilícitos a um grupo de empreiteiras, amplamente coberto pela mídia. No âmbito da pesquisa empírica e ao longo das campanhas do primeiro e – sobretudo – do segundo turno, a disputa acirrada e as tensões sociais manifestaram-se em situações de tensão descritas pelos jovens no âmbito da família e do trabalho.
O sentimento expressado pelos sujeitos da classe média, ou "os patrões", envolveram os ambientes parentais e sociais próximos dos jovens, gerando conflitos no interior do grupo social dos mais pobres, que foram intensificando-se à medida que se aproximava a decisão do segundo turno.
As rixas familiares registradas no relato do dia das eleições refletiram a divisão do pleito e transmitem como as posições sociais conflitantes foram vividas no interior do grupo, por exemplo, em relação aos benefícios do governo que era um dos principais validadores da preferência dos pobres em candidatos do PT. A oposição descrita nos relatos não parecia apenas uma discordância, mas um afastamento ou mesmo uma negação dos interesses em comum que ia além da troca de ideias, pois envolviam paixões que se expressavam em xingamentos e sentimento de ódio nas famílias que até então se consideravam petistas. Ocorreram discussões entre pais e filhos, noras e sogras, entre trabalhadores no ônibus, vizinhos e colegas de trabalho, chefes e funcionários, chegando muitas vezes às ofensas, à burla etc.
Estas forças sociais em sentidos cruzaram internamente aos jovens que dividiam-se principalmente no segundo turno entre o voto em Dilma (PT) e Aécio (PSDB). Destacamos que a influência externa à classe social dos jovens mostrava-se numa paixão, mais especificamente no sentimento de ódio, e em decorrência disso não eram apresentadas razões ou justificativas racionais para "tirar" o PT do governo. Vimos três elementos coincidentes entre esses discursos: o sentimento de prejuízo causado pelo PT, o preconceito contra os nordestinos e beneficiários dos programas sociais e as visões apocalípticas e destrutivas sobre o futuro, caso Dilma ganhasse as eleições novamente.
Os resultados das eleições de 2014 mostraram que o voto e a intenção de voto dos vinte e dois jovens incluídos no estudo de caso mostrou que no 1º turno as posições políticas conflitantes organizaram-se numa polarização entre o apoio e o rechaço à candidata do PT. Por um lado, votando na candidata Marina, que se apresentou como uma forte rival, ao menos na primeira parte da campanha, então nessa chave de negativar a indicação do grupo social, ou no voto branco, nulo ou em figuras como o Pastor Everaldo ou Eduardo Jorge, que tinham pouca expressão eleitoral. Então, no primeiro turno, a posição de afastamento à referência do grupo no voto em Dilma foi mais forte. Já no 2º turno, quando a tensão aumentou substantivamente, e portanto a pressão social, houve uma mudança nesse pêndulo aproximação/afastamento. Houve um grupo que mudou radicalmente de lado – desde uma opção de voto que se explicava em razão da possibilidade de vencer a candidata do PT até uma posição de apoio a esta mesma candidata. Em segundo lugar, os jovens que fizeram escolhas em candidatos com uma baixíssima intenção de votos no primeiro turno – como notadamente o Pastor Everaldo – ou tinham anulado o sufrágio, e nesse sentido, viam-se mais distantes da disputa ou do próprio processo eleitoral, e que no segundo mostraram-se dispostos a se reunir à indicação do seu grupo social, declarando o voto à Dilma.
Por fim, um outro aspecto importante a respeito da votação diz respeito à preferência das mulheres. Havíamos já notado uma situação muito contrastante entre as jovens em termos de condições de existência. Apesar de apresentarem uma escolarização maior que a dos homens, havia um grupo que dependia materialmente dos parceiros, envolvidos ou não no mundo do crime, e outro que em função da convergência nos anos 2000, dos empregos lulistas no setor de serviços, como notadamente no telemarketing, e um processo de aumento de sua escolaridade as aproximava do que o André Singer chamou de "novo proletariado", e, portanto, de uma perspectiva de ascensão social. Em termos de votação, ainda que em situações contrastantes e por motivos muito distintos, as mulheres tenderam a se afastar da sua referência social. Aquelas com condições sociais muito precárias e as que estavam na trilha da ascensão votaram no Aécio Neves no segundo turno. As primeiras por se sentirem excluídas dos benefícios do lulismo e expressarem um forte sentimento de descontentamento, e as segundas porque tendiam a se identificar com a classe média. Por outro lado, havia um grupo de mulheres que apresentava uma situação material familiar e de trabalho ou em termos de outorga de benefícios de programas sociais que as colocava numa situação intermediária entre esses grupos mais desiguais. Estas votaram em Dilma.
IHU On-Line – Como os jovens percebiam o lulismo nesse momento?
Thais Pavez – Como mencionei, os jovens destacavam a diferença entre governantes do mesmo partido e o fato de o governo Dilma não ter conseguido manter o ritmo das mudanças sociais. Entre eles havia uma clara percepção das mudanças entre o governo Lula e Dilma com relação às ações voltadas a melhorar suas condições de vida, que se expressaram no âmbito das eleições de 2014. Entretanto, esta percepção formulou-se principalmente em termos de descontentamento, da ausência da presidente em cumprir com seus compromissos, da sensação de enfraquecimento e inclusive de aspectos pessoais negativos. Aos jovens escapa o contexto econômico mais amplo, mas eles retêm uma sensação mais difusa de que algo "não anda bem". Nesse sentido, tanto o governo do prefeito Haddad, como o da presidente Dilma apresentavam-se sob o signo do descontentamento em função da perda de intensidade das melhorias sociais e urbanas quando comparados aos governos Marta e Lula, respectivamente. Em entrevista outorgada ao jornal Folha de S. Paulo, em dezembro de 2013, o economista Luiz Gonzaga Belluzo afirmou, em relação aos indicadores sociais, que estes teriam "desacelerado" em relação ao governo Lula, tendo o governo dificuldades em levar adiante o projeto lulista. Portanto, a sensação de piora do quadro social se deveria, principalmente, à mudança no ritmo de melhoria do governo Lula.
IHU On-Line - Em que aspectos esses jovens pensam de modo diferente de seus pais em relação à política, trabalho, estudo e ao modo de vida que desejam ter?
Thais Pavez – As escolhas e os obstáculos a serem superados pelos jovens se ligam ao processo sócio-histórico, por um lado, de "desmanche" neoliberal, que retirou do horizonte a perspectiva do trabalho estável na indústria e de integração social para os mais pobres nesse projeto, e colocou para as novas gerações um excludente horizonte da participação no moderno mercado de consumo sem, no entanto, lhes outorgar condições materiais. Por outro, se ligam às contradições do modelo de transformação social do lulismo nos anos 2000. De um ângulo, o projeto reforça o contingente de trabalhadores com carteira assinada na base da pirâmide, de outro, os salários são baixos e as condições de trabalho precárias. Do ponto de vista do problema de estudo da tese, esse conjunto de processos sócio-históricos delimitou uma similaridade de influências existentes entre os sujeitos que nasceram nos anos 1990 e se tornaram jovens no período lulista, constituindo uma "situação geracional". Junto com essa mudança de perspectiva houve também uma estruturação da economia do tráfico na periferia da cidade nos anos 1980 e 1990 e a organização dos negócios ilícitos – narcotráfico, roubos e furtos – na primeira década dos anos 2000. Com isso, se acendeu o dilema para os jovens entre se envolver no crime ou seguir o caminho do trabalhador.
Assim, os jovens encontravam-se incessantemente diante da mesma encruzilhada: se envolver no crime e obter o "dinheiro fácil" – e ter acesso a tudo que desejar imediatamente, mesmo que com isso seu tempo de vida livre diminua drasticamente – ou continuar na trilha do assalariamento, que lhe outorga estabilidade e protege legal e materialmente – ao ter carteira assinada e uma regularidade de renda, ainda que baixa. Ou seja, esta era uma opção moralmente confortável, mas aquém do que deseja consumir e num tempo crônico, que se repete e se estende na realização de trabalhos precários, na rotina da periferia que se inicia muito cedo às segundas-feiras, no sufoco do transporte público de má qualidade. As mulheres vivem esta contradição de uma forma distinta. Por um lado, elas se ligam principalmente de forma indireta ao crime, ao consumo e à "ostentação" por meio da relação com seus companheiros (namorados, maridos etc.) o que reforça sua condição de dependência. Por outro lado, nos anos 2000, os empregos lulistas no setor de serviços, como notadamente no telemarketing, ampliaram o acesso delas ao mundo do trabalho, convergindo com um processo de aumento de sua escolaridade. As alternativas para as mulheres, portanto, colocavam-se entre a dependência material do homem e uma perspectiva de independência via ascensão social, que envolvia também um afastamento das relações afetivas, ainda que fosse por um tempo.
Em termos políticos, observei que os jovens preservam na sua forma de pensar e ideologia aspectos do chamado "conservadorismo popular" e que vem das gerações precedentes. Segundo André Singer, os grupos sociais mais pobres no Brasil aderem à ideia de mudanças em direção à diminuição da pobreza, entretanto, sem prejuízo da ordem e por meio da ação de um Estado fortalecido. Esse elemento da ordem a respeito das eleições encontra semelhança no que se refere às manifestações de junho, aos rolezinhos, às queimas de ônibus etc. Havia, em maior ou menor grau, um receio geral entre os jovens a respeito da desordem dos atos. Por outro lado, alguns deles ainda assim sustentavam, apesar das suas críticas, a desordem das "revoltas" ou mesmo o tumulto dos "rolezinhos" como uma ação orientada à inclusão social de um grupo marginalizado. Acredito que esta "abertura" com ressalvas à desordem e ao conflito deve-se, principalmente, por serem consideradas como medidas extremadas, no caso das revoltas, para chamar a atenção dos problemas do seu grupo social. Por esse motivo de abertura ao conflito e do novo, o fenômeno dos rolezinhos merece um estudo aprofundado.
Desagregação social
Por um lado, reconhecemos um processo de identificação de interesses entre si e com as suas referências em comum, tanto sociais como em relação à periferia. Por outro, fez-se também uma perspectiva individualizante que, no sentido oposto, seus interesses se articulam e identificam com os da classe média, desfazendo qualquer posição conflitante entre ambos os grupos sociais. Este movimento dúplice respondeu às necessidades e conflitos vividos pelos jovens a respeito da busca por melhorar a vida material, alcançar estabilidade e segurança, por um lado, e de conseguir status ou supremacia social por meio da valorização individual, por outro, que leva à negação e/ou restrição das referências comuns. Ou seja, por aqueles que estão em busca da ascensão social via o caminho do trabalho e não necessariamente permanecem ligados aos interesses do próprio grupo social; ao contrário, às vezes, ocorre um processo de desvalorização do próprio grupo para aderir a uma identificação, por exemplo, com a classe média, ou por aqueles que estão ligados ao crime e passam a ostentar seu consumo mobilizando estereótipos de riqueza.
Registramos também a adesão, via conversão evangélica, a uma escala moral que afasta o jovem de uma referência comum ao consagrar a dignidade, a vida espiritual por sobre tudo, a educação, a honestidade e o pagamento dos impostos; todos aspectos individuais, como parâmetros de um “bom cidadão”. É por meio do cumprimento desses preceitos que o cidadão merece ou não ser atendido nas suas reivindicações. A política, vista na preocupação com o emprego, a saúde, a educação e a infraestrutura do bairro, subordina-se à preocupação tanto da própria "salvação", como em ser um “bom cidadão”. Esta ordenação está entranhada numa profunda separação ou cisão entre jovens do mesmo grupo social, "marginais", por um lado, e por outro, "cidadãos". Apenas a estes últimos cabem os direitos e participação política, numa perspectiva que também racionaliza os privilégios da educação, ao separar entre grupos "educados" e "ignorantes", estes geralmente pobres e aqueles de classe média.
Como novidade, em termos políticos - e é disso que vou me ocupar na pesquisa de pós-doutorado –, há esses movimentos espontâneos que vêm dos jovens, desde 2013, como os rolezinhos, que ocupam os shoppings e os espaços de lazer, os quais têm sentidos contraditórios, mas que apontam para movimentos de autonomia dos de baixo.
IHU On-Line - O que você conseguiu evidenciar sobre a escolarização entre os jovens da periferia? Como eles compreendem o estudo, o acesso à universidade e, nesse sentido, as políticas públicas como ProUni e Fies?
Thais Pavez – A possibilidade de cursar o ensino superior faz parte do projeto de ascensão social deles não somente nos dias de hoje, faz parte do projeto de vida do trabalhador. Entre eles, houve um momento importante da escolarização e os dados mostram que cerca de 36% dos jovens da periferia já têm 11 anos ou mais de estudo, e essa escolarização é maior entre as mulheres.
Se compararmos 2001 a 2010, perceberemos uma reconfiguração do quadro do envolvimento no crime e, às vezes, pela necessidade de trabalho, os meninos interrompem com maior frequência a trajetória de escolarização. Com isso, eu diria que as jovens, as mulheres dessa geração lulista, se aproximaram mais do “novo proletariado”, ou ao que alguns chamaram de “nova classe C”. Entretanto, é importante observar que parte ainda apresenta condições de existência muito precárias, como já mencionei. Por isso as situações contrastantes.
IHU On-Line - Os jovens entrevistados participaram de junho de 2013? O que expressaram sobre essas manifestações?
Thais Pavez – Dos jovens que entrevistei, nenhum participou de junho de 2013. Eles estavam a caminho de se integrar a esse “novo proletariado”, mas ainda não eram esse novo proletariado. Segundo André Singer, quem foi para a rua foi esse novo proletariado, que tinha uma renda média baixa e, ao mesmo tempo, uma alta escolaridade por conta de programas como ProUni. Apenas um casal de prounistas participou das manifestações, que fizeram parte do estudo como caso controle, inclusive eles foram convidados por colegas de sala de aula da própria faculdade.
Os jovens do estudo acompanharam e se informaram sobre as manifestações por meio de jornais e programas da televisão; Jornal Nacional da Globo, SPTV, Jornal da Record, e programas de reportagens policiais conduzidos por José Luiz Datena e Marcelo Rezende. O fato mais significativo a respeito das opiniões dos jovens sobre as manifestações de junho foi que houve uma variação em termos da reprodução das informações e do discurso da mídia, apesar de todos eles terem se informado por esse meio sobre as manifestações de junho de 2013. Em termos das nossas preocupações da pesquisa, essa variação revelava um movimento ideológico de adoção do sentido conservador e individualizante das pautas da mídia e outro não. Estes se expressavam em termos de interesses em comum, sobretudo, ao se pensarem como trabalhadores.
No conjunto de entrevistados, identificamos duas posições distintas. Os jovens do primeiro grupo concordavam e achavam legítimas as reivindicações a respeito das passagens e traziam elementos a respeito do custo de vida e o salário da experiência do trabalhador no transporte público, mas discordavam da desordem vista na destruição de bens de uso coletivo. Desse modo, a referência ao coletivo e ao trabalho os aproximava dos seus interesses comuns. No segundo grupo, diferentemente, observou-se que suas posições traziam elementos do discurso da mídia. Achavam a reivindicação do preço da passagem irrelevante e faziam uma forte crítica ao "vandalismo", qualificando os manifestantes como aproveitadores e ladrões.
IHU On-Line - Qual é o sentido do rolezinho para eles?
Thais Pavez – O rolezinho é um movimento espontâneo que expressa o desejo desses jovens de integração e valorização social, e de reivindicação da cidade. No caso dos rolezinhos, de passear, de ter acesso a lazer nesses espaços dos shoppings que são, digamos, um dos centros da moderna civilização capitalista. Para eles, essa ida ao shopping representava o desejo de participar, de ocupar esses espaços, mas não apenas de forma individual. De forma coletiva. Alguns jovens faziam uma ponderação em relação à ordem, criticando o tumulto, sem, contudo, deixar de compreender o sentido do rolezinho. Outros jovens apresentavam nas suas narrativas elementos do discurso da mídia, sinalizando que o rolezinho era vandalismo, baderna, mas a grande parte dos jovens acabou apoiando o movimento. O rolezinho expressa um desejo de integração muito forte desses jovens ao mercado moderno de consumo, só que não por uma via convencional, que é a individual, de ir sozinho ao shopping fazer compras, mas em grupo, trazendo elementos do seu mundo cultural, das suas referências, como o funk. É um movimento que não busca destruir, digamos assim, os shoppings, pelo contrário, mas tensionando a ordem existente lá dentro preservada, como sabemos, por dispositivos securitários. São espaços fechados à cidade, que buscam reproduzir os espaço urbano sem a "desordem" do dia a dia, sem suas contradições, com a promessa de segurança etc. Só que ao barrarem os jovens, como vimos, levam ao paroxismo a exclusão social em nome da ordem.
É interessante que os rolezinhos talvez tenham seguido a lógica de ocupação que apresenta uma veia mais radical, quando comparado ao conservadorismo popular. Talvez estejam percebendo que a participação social já não está colocada no horizonte e, então, aderem a uma lógica de ocupações, que é a lógica que tem aparecido nas escolas, na ida ao Ibirapuera, no sentido de ocupar os espaços. Trata-se, portanto, de um movimento espontâneo dos “de baixo”, que merece bastante atenção para que se possa entender profundamente quais são suas contradições e seu sentido.
IHU On-Line - As políticas públicas e sociais desenvolvidas até então, têm contribuído para dar outra perspectiva de vida aos jovens da periferia? Em que sentido? O que ainda precisa ser feito na sua avaliação?
Thais Pavez – Pensando nas políticas do lulismo, a oferta de emprego, certamente, oferece uma saída ao crime, apesar das contradições e do fato de os serviços serem mais precários, assim como as políticas de integração ao Ensino Superior, como o ProUni. Em termos de políticas públicas, pensando, por exemplo, na cidade, as ações desenvolvidas pelos jovens revelam um desejo, uma ideia de cidadania que envolve o acesso à cidade, um viver na cidade. Nesse sentido parece que há um espaço de trabalho importante para permitir formas de acesso dos jovens a espaços de uso da cidade e pensar formas de ampliação desses espaços na própria periferia. Ou seja, formas em que se permita integrar os jovens ao centro da cidade, onde tem esse habitar, mas que também a periferia possa se integrar aos demais locais da cidade. Esse é um desejo muito forte deles e percebo que há uma frustração grande em relação, por exemplo, à ausência de ciclovias e de parques na periferia. Então, essa ausência reforça o sentimento de exclusão.
IHU On-Line - De que modo esses jovens usufruem e participam da cidade?
Thais Pavez – A sociabilidade deles acontece, principalmente, nos próprios bairros, nas ruas e nos bailes de funk de rua. Eles vão aos shoppings, até porque houve construção de shoppings e uma expansão da periferia consolidada, de setores de classe média em regiões que não eram da classe média tradicional. Alguns jovens vão ao Parque do Ibirapuera, à Virada Cultural e, de modo geral, eles têm essa intenção de deslocamento. No entanto, eles têm um impedimento material, que é o custo da passagem. Por isso, há um desejo de que essas ciclovias se expandam para os bairros deles. Mas essa circulação na cidade ainda é restrita, há um deslocamento principalmente em função do trabalho.
IHU On-Line - A esquerda brasileira hoje se comunica com os jovens de periferia? Como?
Thais Pavez – Têm ocorrido movimentos recentes, principalmente por conta das ocupações das escolas. Há grupos que estão na esquerda fora do PT e que têm feito trabalho nas periferias. O Movimento Passe Livre - MPL tem feito alguns trabalhos, mas isso é uma novidade e temos que ver como essa questão se desenvolverá. Entretanto, hoje não temos a mesma escala de trabalho de base que houve nos anos 1970 e 1980, com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs em um contexto político que acabou levando à criação do PT. O PT abandonou esse trabalho quando decidiu dar o giro mais eleitoral e agora, aparentemente, esses grupos – acredito que a partir de Junho – começaram algum tipo de trabalho nas periferias, o que se expressou nas ocupações das escolas.
Em termos de dificuldades para a esquerda fazer trabalhos de base na periferia, talvez seja a presença normativa das igrejas evangélicas, que acabam inibindo muitas ações mais reivindicativas, em razão de toda essa associação que elas fazem das manifestações aos baderneiros, inclusive aos bandidos.
Por Patricia Fachin
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A dessolidarização social e a ostentação pelo consumo: um novo retrato do Brasil à luz da periferia urbana de São Paulo. Entrevista especial com Thais Pavez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU