14 Junho 2016
A guerra declarada entre os bandos de La Quinta e de Portillo, duas pequenas localidades do bairro de Catuche, no centro de Caracas, capital da Venezuela, já deixou centenas de "mães órfãs".
A reportagem é de Daniel Pardoda, publicada por BBC Brasil, 11-06-2016.
Algumas delas, nos casos mais trágicos, perderam até cinco filhos. "Naquele tempo (nos anos 1980 e 1990), todo mundo estava envolvido (com o crime)", diz à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, uma dessas mulheres, Yanara Tovar.
Algumas das mães, que denunciavam os rivais de seus filhos, inclusive vigiavam a região e até mesmo escondiam armas em seus fornos.
Mas isso mudou em 2006, quando elas firmaram, em suas próprias palavras, um "acordo de paz". Desde então, não houve um único homicídio em Catuche causado pelo enfrentamento histórico entre os bandos de La Quinta e Portillo.
"Não é que tenham ficado amigos, mas já não estão se matando", explica Tovar.
A solução
Durante as últimas décadas, crimes desse tipo transformaram a Venezuela em um dos países mais inseguros do mundo.
Os quase 18 mil homicídios contabilizados pela Procuradoria-Geral da República no ano passado, metade do número divulgado por ONG especializadas, revelam uma nação assolada pela violência.
A maioria desses assassinatos se deu em bairros populares, em meio à luta por prestígio e pelo controle de territórios e onde as festas das sextas-feiras, um instrumento para demonstrar supremacia, podem terminar em massacres.
Alguns analistas atribuem a violência na Venezuela a uma ruptura do vínculo afetivo entre as mães e seus filhos, que se dá por diferentes motivos e tem como consequência a entrada desses jovens no mundo do crime.
"A família popular venezuelana é matriarcal, porque, diante da ausência ou intermitência da figura paterna, é a mãe quem impõe regras à vida familiar", explica o sacerdote jesuíta Alejandro Moreno, talvez o pesquisador do país que mais conheça os problemas dos bairros mais pobres.
Assim, o distanciamento entre a mãe e o filho faz com que os jovens se tornem criminosos. Ao mesmo tempo, Moreno argumenta em seu trabalho acadêmico que a solução para o poblema pode estar nas próprias mães venezuelas.
Essas mulheres seriam uma forma de fazer com que os adolescentes deixassem de copiar o "modelo do malandro", como são chamados os criminosos que integram estes bandos.
"Se você dá o controle do bairro para essa mãe, isso gera uma reação nos seus filhos, e foi isso que aconteceu em Catuche."
Mediadora de paz
De fato: no bairro, as mães deixaram de ser cúmplices da violência e passaram a atuar como gestoras da paz.
Doris Barreto chegou a Catuche nos anos 1990, enviada por outro conhecido sacerdote jesuíta e atual reitor da Universidade Católica Andrés Bello, Francisco José Virtuoso.
A assistente social administra desde então no bairro a sede da organização católica Fé e Alegria.
"Tinha pânico quando cheguei. Os malandros paravam na porta da fundação para ver quem eu era. Passar por eles me dava calafrios", diz ela.
"Mas, uma semana depois, consegui que passassem a me dar bom dia, e, com o tempo, fui me dando conta de que, na verdade, eles queriam trabalhar pela comunidade, que consideravam sua família, mas era preciso canalizar essa vontade."
Sentada em uma sala de jantar que serve como sala de aulas, Barreto repete uma frase dita pelos rapazes que a marcou: "Para acabar com a violência, não é com a gente que você deve falar, mas com as velhas fofoqueiras". Ou seja, suas mães.
Barreto lembrou dessa frase quando uma dessas mães, que havia acabado de ter um filho morto em um desses confrontos, propôs realizar uma assembleia entre os habitantes de La Quinta e Portillo na fundação.
Aconselhada pelo padre Virtuoso, a assistente social aceitou, mas pediu que só as mães comparecessem. "Fizemos a reunião com umas dez mães de cada lado. Nesse dia, choramos, rezamos e nos abraçamos", recorda.
Em conjunto, decidiram que os integrantes dos bandos firmariam um acordo de paz com quatro pontos principais:
1. Quem descumprir o acordo será convocado para uma reunião;
2. Quem descumpri-lo três vezes será denunciado para a polícia;
3. Não se pode trazer estranhos para o bairro;
4. Não se pode acender isqueiros nas ruas (um sinal para abrir fogo contra o inimigo).
Barreto guardou o documento em que o acordo foi firmado. Desde então, ninguém foi denunciado.
O valor da fofoca
Mas foram convocadas reuniões. Uma delas foi por causa de Adrián, filho de Yanara Tovar, que abre esta reportagem. Foi ela quem sugeriu a realização da assembleia a Barreto.
"Um dia chegou até mim uma fofoca de que meu filho estava vendendo drogas. Então, pedi às minhas comadres para investigarem, e elas confirmaram", conta ela.
"Logo, foi realizada uma reunião com ele sem minha participação. Deram uma semana para se desfazer da droga, e ele não voltou a vender."
Um jovem risonho e magro, com o rosto marcado por cicatrizes, Adrián trabalha hoje como motoboy.
A pedido de sua mãe, não solicitei uma entrevista a ele. "Adrián nunca tinha demonstrado intenção de ser um malandro", garante Tovar. "Mas o ambiente em que vivem esses rapazes exige isso deles. É a lei das ruas."
Ela admite: ainda que a violência tenha sido erradicada de Catuche, o bairro não é imune aos problemas que vêm do resto de Caracas, considerada a cidade mais violenta do mundo.
"Às vezes, os rapazes entram em confronto com pessoas de outros bairros, mas já dissemos a eles que isso é um problema deles e da polícia", diz ela.
"Não podemos controlar toda a cidade, mas, ao menos aqui, não vamos permitir que deixem mais mães órfãs."
E, assim, essas mães conseguiram algo que nenhuma autoridade venezuelana havia conseguido: a obediência dos malandros.
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O bairro da Venezuela onde as mães assumiram o poder e acabaram com a violência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU