24 Junho 2013
Meios de comunicação servem para “alcançar” fiéis católicos que não têm tempo de frequentar a igreja. Ida de missionários brasileiros ao exterior pode ser compreendida numa perspectiva de “missão reversa”, afirmam as pesquisadoras.
Surgida na década de 1990, a Comunidade de Vida e de Aliança Canção Nova deve ser compreendida a partir da inspiração encontrada “na espiritualidade da Renovação Carismática Católica e seus desdobramentos nas últimas décadas”, assinalam Brenda Carranza e Cecília Mariz na entrevista que concederam por e-mail à IHU On-Line. É preciso também ter em mente o neopentecostalismo da Igreja Universal do Reino de Deus e seu protagonismo midiático religioso como pano de fundo do surgimento da Canção Nova. As pesquisadoras mencionam a transnacionalização da Canção Nova em países como França, Itália, Israel, Portugal, EUA e Paraguai, o que pode ser analisado em termos de uma “missão reversa”: “Aqueles que um dia foram objeto de missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo histórico, enviando missionários para as metrópoles, com a consigna de converter a seus cidadãos”.
Brenda Carranza possui graduação em Teologia pela Universidade Francisco Marroquim – UFM, na Guatemala, bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, e bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas/Pontifício Ateneo Santo Anselmo, PUC-Campinas/Roma. É mestre em Sociologia pela Unicamp, com a dissertação Renovação Carismática Católica: Origens, mudanças e tendências, e doutora em Ciências Sociais pela mesma instituição, com a tese Movimentos do Catolicismo Brasileiro: cultura, mídia e instituição.
Docente na PUC-Campinas, Brenda é também coordenadora da Coleção Sujeitos e Sociedade da editora Ideias & Letras. De suas publicações destacamos: Catolicismo midiático (Aparecida: Ideias & Letras, 2011) e Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências (2. ed. Aparecida–SP: Santuário, 2000). É uma das autoras de Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude política (São Paulo: Paulinas, 2012) e com Cecília Mariz escreveu o artigo Catholicism for Export: the case of Canção Nova, publicado na coletânea The Diaspora of Brazilian Religions (Netherlands: Brill, 2013).
Cecília Loreto Mariz possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutorado em Sociology of Culture and Religion (Ph.D) pela Boston University. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e uma das organizadoras de Novas Comunidades Católicas: em busca do espaço pós-moderno (Aparecida: Ideias & Letras, 2009), além de autora de Coping With Poverty: Pentecostals and Base Communities in Brazil (Philadelphia: Temple University Press, 1994).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que aspectos a Canção Nova é um “catolicismo de exportação”?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Entendemos que a Comunidade de Vida e de Aliança Canção Nova foi um dos pivôs que impulsionou, na década de 1990, a visibilidade de um catolicismo de massas e do reavivamento de determinado setor de sua juventude. Para fundador da Comunidade, Mons. Jonas Abib, “o que a Canção Nova tem de mais forte são os meios de comunicação [porque] é o presente que o mundo mais almeja, corresponde à sua maior necessidade.” (1) Por isso, ao assumir como vocação modernizar tecnologicamente a Igreja brasileira, os quase mil membros da Canção Nova se empenham na construção e manutenção de um império midiático que abrange Rádio (AM e FM) TV, Portal, WebTV e Mobile (o que inclui a transmissão de fotos, músicas, imagens, vídeos e pregações pelo celular, palmtops e iPod).
No Brasil, o sinal é transmitido por 86 operadoras de TV a cabo e no exterior via satélite. Além de produzir e comercializar livros (com mais de 1.500 títulos), CDs, e DVDs (mais de 500), a Canção Nova conta com um Call Center (120 mil chamadas mensais), um departamento de audiovisuais e estrutura multicanal de comercialização (varejo, atacado, porta a porta, catálogo e e-commerce) . Mais ainda, com a finalidade de diversificar seus meios de atuação, a CN conta com um Instituto de Ensino Fundamental e Médio e com uma Faculdade de Meios de Comunicação, que, por sua vez, qualifica quadros internos da Comunidade .
Teia comunicativa
Essa imensa rede de meios permite ecoar, por toda a geografia católica, pregações sobre a família, o mal e o demônio no mundo, orações de cura e libertação, catequese sacramental e amplas campanhas de arrecadação financeira para a Canção Nova (2). Somam-se a essa teia comunicativa os inúmeros acampamentos, retiros, festivais de música, encontros de PHN (por hoje não peco mais) e o Hosana Brasil, capaz de congregar até 200 mil jovens num só final de semana onde lazer, entretenimento e orientações doutrinais e moral sexual católica se amalgamam para oferecer uma convivência “sadia”.
Tal conjunto de estratégias permitiu à Canção Nova constituir-se numa referência de “sucesso” no meio católico e constituir um estilo de evangelização, pautado na promoção de eventos multitudinários, na integração de mídias como aposta de evangelização, na agregação de voluntários e vocações ao serviço das iniciativas da Comunidade e na criatividade para angariar benfeitores.
Nesse leque de iniciativas e propostas, a Canção Nova se apresenta como um novo estilo de ser católico que, junto a seu relativo sucesso na habilidade no uso dos meios eletrônicos na Igreja, incentivou os membros canção-novistas a se arriscar a implantar além-fronteiras as propostas que deram certo no Brasil, apostando nos clichês da “simpatia” e “cordialidade” identificadas como marca dos brasileiros no exterior.
IHU On-Line – Qual é o contexto de surgimento e consolidação dessa expressão do catolicismo brasileiro?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Num olhar retrospectivo encontraremos que, de um lado, a inspiração primordial da Canção Nova se encontra na espiritualidade da Renovação Carismática Católica – RCC e seus desdobramentos nas últimas décadas. Do seio carismático emergiram inúmeras bandas de jovens que, junto a religiosas e padres cantores, configuraram uma cultura gospel católica, aquecendo o mercado fonográfico dos últimos anos.
Será na RCC que a Canção Nova encontrará uma das maiores alavancas que lhe permitirão deslanchar seu carisma e missão enquanto produtora midiática, pois os carismáticos serão seu público alvo.
Do outro lado, o crescimento da Canção Nova se dá na efervescência do neopentecostalismo , no qual a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD terá o protagonismo na formação da mídia religiosa no Brasil. Mas tanto a Canção Nova como a IURD compartilham da mesma visão sobre o uso indispensável dos meios de comunicação social para “alcançar” os fiéis que, nos ritmos frenéticos da vida moderna, não têm tempo de ir ao templo nem às igrejas. Para ambas, a rádio, TV, webTV, internet, Twitter, blogs e o Facebook se convertem em espaços privilegiados de difusão doutrinal e de disputa das “almas” afastadas da religião.
IHU On-Line – Como a Canção Nova se insere nessa diáspora das religiões brasileiras pelo mundo?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Antes de tudo temos de lembrar que, diferente de vários de outros grupos que possam constituir-se como expressões tipicamente brasileiras , a Canção Nova não é uma “religião brasileira”, nem mesmo uma “igreja brasileira” ou grupo autônomo de alguma religião pouco institucionalizada, mas sim um grupo católico que foi criado no Brasil, segundo dissemos antes.
Como católico ele se insere primeiramente na proposta missionária da Igreja Católica como um todo, e aí a CN obedece a um projeto mais amplo, segue as metas e as prioridades da Igreja Católica Apostólica Romana, antes de mais nada.
No entanto, destacamos como o crescimento brasileiro em geral e sua exportação de migrantes e missionários para o exterior se expressa também no catolicismo, experiente por mais de dois mil anos na dinâmica missionária.
Por isso, o caso da CN aparece como uma iniciativa religiosa organizada por brasileiros e, assim, traria um estilo e fervor de uma determinada forma de viver o catolicismo consolidado no Brasil. Evidentemente que, por ser o catolicismo uma das matrizes culturais do país, a Canção Nova não deixa de ter elementos que podemos identificar como próprios da cultura brasileira. Essa ida dos missionários brasileiros ao exterior tem sido também analisada como parte de um processo de “missão reversa” do cristianismo e discutida por Paul Freston e outros autores europeus . Esse conceito se refere a um fenômeno contemporâneo: o fervor missionário e desejo de expandir o cristianismo é mais forte atualmente nos países que no passado foram objetos de missão. Dito de outra maneira, aqueles que um dia foram objeto de missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo histórico, enviando missionários para as metrópoles, com a consigna de converter a seus cidadãos .
IHU On-Line – Que peculiaridades ela assume em outros países?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Como falamos acima, a CN é parte da Igreja Católica e faz missão onde a Igreja se encontra estabelecida por longo tempo, bem mais do que no Brasil. Dessa forma, ela vai apenas onde é convidada por bispos e/ou arcebispos, respeitando os processos hierárquicos de organização eclesiástica. Os bispos conhecem seu trabalho e a convidam para uma missão específica.
Nos EUA, por exemplo, a CN foi convidada para evangelizar e apoiar brasileiros que migraram para aquele país atrás de mais oportunidades de trabalho. Em Israel, por sua vez, a Canção Nova se associa à outra nova comunidade, a Obra de Maria, para apoiar os peregrinos (ou turistas/peregrinos) católicos brasileiros que vão à Terra Santa. Ao mesmo tempo, produzem programações televisas que permitem trazer imagens da Terra Santa para os que não podem ir até lá.
De forma similar, a presença da CN na Itália teria esse papel de trazer Roma para perto do Brasil, com o arsenal de materiais divulgados no seu sistema integrado de mídias (3). Já em Portugal e na França, além de atingir os imigrantes brasileiros nesses países, a CN se propõe a evangelizar os próprios portugueses e franceses. Para isso, incentiva a formação de grupos integrados por fiéis desses países e desenvolve atividades e meios de comunicação voltados para esse segmento eclesial, o que muitas vezes gera conflitos internos nas próprias igrejas particulares, como mostra o estudo realizado em Portugal por Eduardo Gabriel .
IHU On-Line – Em que medida a rede de comunicações da Canção Nova contribui nessa diáspora que experimenta pelo mundo e qual a relação entre as mídias e novas tecnologias com a evangelização promovida pela Canção Nova?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – A relação entre mídia e missão é central na CN, como já dissemos no início, e consideramos essa relação um ponto central de nosso argumento. Desde seu surgimento, essa Comunidade se voltou para o uso da mídia, primeiro a rádio e logo depois a TV. Seu carisma e seu estilo missionário baseiam-se no uso intensivo da mídia como prioridade na evangelização, portanto, também no exterior, o foco da missão tem sido no desenvolvimento das mais variadas mídias católicas (site, webTV, blogs, programas de rádio).
Por exemplo: em Portugal sua presença é marcada fortemente com a TV, rádio e internet, da mesma forma que no Brasil. Para nós é importante discutir como essa marca CN, com seu conteúdo católico carismático que está dando certo no Brasil, é aceita no exterior.
Embora não tivemos ocasião de coletar dados empíricos sobre isso, refletirmos sobre as hipóteses de quem são os receptores dessa mídia no exterior e de que maneira é processada essa recepção. Somos conscientes que para avaliar essas hipóteses seria necessário um investimento em pesquisa de recepção, o que implica um trabalho de campo mais focal e demorado. No entanto, arriscamos sugerir que lá fora se repete o que acontece no Brasil, no sentido que a recepção da mídia produzida pela CN se limitar ao universo católico.
IHU On-Line – Nessa lógica, qual é a importância das casas de missão no exterior, como aquelas existentes na França, Itália, Israel, Portugal, EUA e Paraguai?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Como falamos acima, não temos uma pesquisa sobre os receptores, nem uma pesquisa com católicos desses países de missão. Portanto, nosso trabalho está focado na importância que essa mídia e casas de missão têm para os católicos brasileiros. Isso também já tem sido observado em outros estudos em diversas partes do mundo no campo protestante pentecostal sobre esse tipo de missão, que tem sido chamada de “missão reversa” .
Observa-se nesses casos que a igreja, ou comunidade que envia missionários, se sente unida e fortalecida tomando parte nesse projeto global de cristianização. Os missionários, por sua vez, têm experiências de vida especiais, dado o conhecimento que adquirem acerca do que acontece fora do Brasil, sobre outros estilos de se viver e mesmo de ser católico. De certa forma, todo esse projeto enriquece o missionário e a sua comunidade de origem. Evidentemente novos estudos precisam ser feitos sobre o que ocorre nos países receptores.
Mas o que destacamos é o duplo movimento gerado nessa inserção midiática dos missionários da CN. O primeiro é centrífugo, visto que o envio de missionários supõe fortalecimento na identidade da própria comunidade, dando-lhe visibilidade universal. Já o segundo movimento é centrípeto, pois a própria realização da missão internacional, no campo midiático, retroalimenta com seus produtos as próprias programações internas da CN no Brasil. Nesse sentido, aqui se verifica muito bem aquilo que se aprende em termos religiosos: “dar pode ajudar mais a quem dá do que a quem recebe”.
IHU On-Line – Que elementos fazem do Papa Francisco uma figura midiática?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Embora seja muito cedo para avaliar a construção de um carisma midiático, que possa potencializar seu papado, podemos afirmar que existem alguns elementos que distinguem a recepção do Papa Francisco, da desconstrução midiática sofrida pelo Papa Bento XVI. Nessa direção, apontamos que a acolhida inicial de Francisco o aproxima mais à ascensão midiática de João Paulo II. Observamos como a recepção internacional da pessoa de Jorge Mario Bergoglio acenou para uma linguagem mais próxima dos setores populares.
A grande mídia desenhou uma personalidade que contrastou com o papa anterior, destacando uma natureza latina (meio argentina, meio italiana) que potencializou seus atributos comunicativos naturais. Nesse ínterim os gestos do pontífice foram transformando-se em gestos paradigmáticos — enquanto ruptura com a personalidade do papa anterior e direcionamento para outros modelos relacionais e, talvez, eclesiais. Por isso, valorizam-se expressões singelas como “bom almoço”, ditas por ele aos peregrinos na Praça de São Pedro.
Destaca-se, no discurso aos jornalistas, a solicitação de permissão para lhes oferecer uma bênção . Noticiam-se a simplicidade e a humildade da opção por morar na Casa Santa Marta, espaço dedicado à acolhida de convidados no Vaticano, e não no apartamento papal. Ganha espaço na pauta dos jornais a ousadia de celebrar na Quinta-Feira Santa a missa num lugar não convencional — uma casa de jovens detentos, entre eles mulheres e muçulmanos. Salienta-se sua tendência pastoral e não dogmática, quando solicita aos sacerdotes sair na procura de suas ovelhas.
Enfim, é inegável que estamos diante de um processo de empatia inicial, no qual os meios de comunicação estão pautando, como é inerente a sua natureza ideológica, o que deve ser olhado e como deve ser olhado. Ou seja, vemos mais o homem dos gestos do que das ideias e posições. Mas em breve o Papa Francisco terá sua primeira viagem internacional, virá ao Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude.
Nela sua palavra, seus discursos e mensagens terão um direcionamento concreto. O Francisco, que é um mito para além dos muros da Igreja, pois evoca o compromisso ecológico de um santo medieval, dará passo ao Papa Francisco com sua visão da Igreja Católica em relação com a sociedade moderna. Essa última, com suas demandas de transformação social, cultural, política, econômica, na maioria das vezes, encontra-se em rota de colisão com a Igreja Católica. A cobertura dessa viagem, que é em si mesma um evento midiático, talvez nos ajude a compreender se a mídia está disposta a investir, ou não, na construção de um carisma midiático no papa Francisco. Porém, não podemos descartar a possibilidade de que ainda devamos esperar mais uns meses para perceber os sinais.
IHU On-Line – Como a Canção Nova se posicionou em suas difusões a partir da escolha do jesuíta?
Brenda Carranza e Cecília Mariz – Se prestarmos atenção à cobertura da tríade: renúncia / eleição / tomada de posse que a Canção Nova realizou, observaremos que essa não difere daquela que a grande imprensa fez. A CN compartilhou a mesma surpresa com a escolha do arcebispo de Buenos Aires. Dias antes da escolha do papa, a própria CN direcionou seu olhar para os cardeais, definidos, também pela grande mídia, como papavéis . As especulações sobre a razão da escolha do nome Francisco também não foram originais: “Eu mesmo acreditei [confessa o Pe. Araújo] que a motivação primeira para a escolha do seu nome fosse o companheiro de Inácio de Loyola, o grande missionário Francisco Xavier, bases de sua congregação: a Companhia de Jesus ou os jesuítas”.
Mesmo nesse amplo alinhamento, duas coisas chamaram a nossa atenção. Enquanto a imprensa de modo geral traçou um perfil intelectual do papa associado a sua pertença à Companhia de Jesus, a Canção Nova tendeu a traçar um continuum entre a formação intelectual de Francisco e seu contato com Bento XVI. Mas tanto a CN quanto a mídia em geral valorizam mais os gestos comunicacionais do que a capacidade intelectual do papa. A segunda observação é o silenciamento da Canção Nova sobre um possível envolvimento do jesuíta Bergoglio com a ditadura militar argentina, fato que não passou despercebido à imprensa secular e alternativa.
Entrevista: Márcia Junges
Nota:
A fonte da imagem que ilustra a entrevista é http://migre.me/f9mRb
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Canção nova: catolicismo tipo exportação e missão reversa. Entrevista especial com Brenda Carranza e Cecília Mariz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU