30 Agosto 2016
“No princípio, o movimento de Jesus não era hierárquico, mas messiânico; não promovia uma ordem sacerdotal, mas uma experiência de comunhão de todos, começando pelos menos importantes. Na raiz, o cristianismo continuou sendo o que era e assim pôde se expandir entre os novos povos, após a queda do Império Romano, mas aceitou e sacralizou, de fato, a distinção dos crentes em dois níveis dentro da Igreja”, escreve o teólogo espanhol Xabier Pikaza, em artigo publicado por Religión Digital, 28-08-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Retomo a motivação de três dias atrás, meu trabalho na revista Iglesia Viva sobre o tema da desclericalização, clericalização e nova desclericalização da Igreja.
No último dia, tratei da desclericalização de Jesus, que não era sacerdote, nem ministro ordenado de espécie alguma, mas um simples homem, um ser humano, sem mais, mas anunciando e preparando a chegada da nova humanidade messiânica.
Tratei da primeira Igreja como movimento laical de fraternidade, a serviço dos pobres e excluídos, ensaio geral de uma humanidade igualitária, aberta a todos os homens e mulheres, a todos os povos.
Hoje, na forma de intermediário, ocupo-me brevemente da clericalização, que não veio por obra de Cristo, nem de seu Espírito (mas de outros princípios...), mas que foi providencial, pois ajudou a estabilizar e impulsionar a mensagem de Jesus dentro de algumas estruturas que vinham dadas pela cultura social de seu tempo.
Jesus não criou uma instituição eclesial, organizada de forma hierárquica, mas é evidente que a hierarquia precisou vir depois, não a partir do Evangelho, mas apesar do Evangelho, pois os movimentos de humanidade só funcionam dessa forma, como apontarei de um modo mais conciso.
Resta-me ainda a terceira parte, que publicarei, se Deus quiser, dentro de dois dias. Um bom final de semana a todos.
Após duas derrotas (67-70 e 132-135 d. C.), os judeus aceitaram de um modo consciente (e consequente) o fim do templo e de seus sacrifícios, chorando sua orfandade diante do Muro das Lamentações, para se instituir como federação de sinagogas livres, sem sacerdotes.
Os cristãos, ao contrário, apesar de manter o sacerdócio universal de todos os crentes, buscaram, mais tarde, “recuperar” alguns simbolismos sagrados e hierárquicos mais próprios de um tipo de Antigo Testamento e de política romana que do Cristo.
O tema foi esboçado a partir de 150, quando diversos grupos de tipos semignóstico, entre eles Marcião, tentaram separar o cristianismo de sua base israelita, convertendo-o em uma religião de experiência interior e organização intimista, mais próxima do budismo ou hinduísmo que da mensagem de Jesus. Contra isso reagiu a Grande Igreja:
a) Manteve sua origem judaica, reforçando alguns elementos sagrados da instituição sacerdotal de Jerusalém, de forma que os bispos e presbíteros passaram a se apresentar como sacerdotes, um grau superior de cristianismo.
b) Destacou sua independência, introduzindo em sua Escritura textos próprios (Novo Testamento) e reorganizando sua vida e liturgia a partir da Eucaristia ou Memória da Ceia de Jesus, entendida de forma sacrificial, em uma perspectiva na qual combinavam elementos judaicos e helênicos, em um processo que já estava em marcha a partir de 200 d. C.
- Sacralização sacerdotal, de fundo israelita: bispos, presbíteros (que antes eram ministros leigos) se assumiram como sucessores dos sacerdotes e levitas de Jerusalém, de maneira que a Igreja acabou sendo mais israelita que o rabinismo judeu, que abandonou a estrutura teocrática para instituir um governo colegiado de anciãos e rabinos, intérpretes da Lei.
- Ordenamento romano-helenístico. Esses “sacerdotes” cristãos passaram a ser como uma “classe” superior, na linha da “ordo” romana, com traços de pensamento helenísticos: os superiores (bispos, presbíteros) se assumem como sinal especial de Deus, diferentemente de Jesus, que dava preferência aos últimos. Esta hierarquização, com elementos de filosofia grega e política romana, marca a grande inversão do cristianismo, que culminou com o constantinismo (século IV d. C.) e com a reforma gregoriana (século XI).
Esta inversão evitou o risco de dissolução gnóstica do cristianismo, mas fez isto sob o peso de silenciar elementos importantes do Evangelho, como a sacralidade universal e igualitária de todos os crentes. No princípio, o movimento de Jesus não era hierárquico, mas messiânico; não promovia uma ordem sacerdotal, mas uma experiência de comunhão de todos, começando pelos menos importantes. Na raiz, o cristianismo continuou sendo o que era e assim pôde se expandir entre os novos povos, após a queda do Império Romano, mas aceitou e sacralizou, de fato, a distinção dos crentes em dois níveis (=ordens) dentro da Igreja.
Imagem: Religión Digital
Esta divisão, na qual as mulheres ficaram excluídas da hierarquia, vinculou-se, além disso, com a forma de celebrar os dois grandes "sacramentos" cristãos:
- A eucaristia (que precisava ser presidida pelo bispo ou por um delegado seu);
- E a reconciliação ou readmissão dos pecadores oficiais na Igreja (que ficou reservada ao bispo). Foi um tema de organização eclesial, e assim:
- Surgiu o clero, formado por bispos, presbíteros e diáconos varões, elevados sobre o restante da Igreja, como representantes de Jesus, com autoridade sagrada, uma ordem sacerdotal, como se a “graça” de Deus passasse por eles ao restante dos fiéis. A Igreja, que havia nascido do Reino para os pobres, passou a se converter em instituição de poder sagrado a serviço dos pobres, mas acima deles.
- Permaneceu o povo, formado por leigos, cristãos receptivos, que escutam a palavra e recebem os sacramentos que o clero lhes oferece, ao qual sustentam com suas contribuições econômicas. Antes não existiam estes leigos, pois todos os cristãos o eram, membros do “laós” ou povo de Deus. Agora começaram a existir, passando a se converter na grande massa da Igreja.
Esta divisão não é evangélica, mas prestou um serviço, pois só por ela foi possível estabilizar a Igreja como organização unitária e eficaz (subsistema sacral), em um mundo hierárquico. Esse é o paradoxo: os cristãos rejeitaram a hierarquia religiosa do Império, sendo perseguidos por isso, mas, ao longo de um processo fascinante (e perigoso) de refundação, acabaram assumindo muitos de seus traços sagrados. Nessa linha, cita-se cita o sistema do Pseudo-Dionísio (século V-VI), que interpretou as estruturas cristãs na perspectiva hierárquica, supondo que a salvação vem de cima e desce aos graus inferiores.
Dionísio concebe a Igreja como uma ordem gradual, que descende de Deus, por planos intermediários até a matéria, para retornar a partir dela ao divino.
a) O bispo possui a ciência das Escrituras, em chave de perfeição, por isso, pode revelar seu conhecimento e santidade a partir do alto, sendo poder divino, diretamente iluminado por Deus.
b) Os sacerdotes (presbíteros) recebem a iluminação do bispo e a transmite aos estamentos inferiores. Oferecem os símbolos divinos aos fiéis e purificam os profanos pelos sacramentos.
c) Os ministros (diáconos) são dirigidos para a purificação dos sacerdotes, para que a obra divina possa se realizar (Hierarquia Eclesiástica V, 1).
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“A hierarquia precisou vir depois, não a partir do Evangelho, mas apesar do Evangelho”. Artigo de Xabier Pikaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU