07 Novembro 2011
Jon Sobrino, teólogo, jesuíta, escreve uma "carta" para Ignacio Ellacuría, reitor da Universidade Centro Americana de San Salvador - UCA, assassinado, no dia 16 de novembro de 1989, juntamente com outros cinco companheiros jesuítas e duas mulheres.
O texto foi publicado por Eclesalia, 04-11-2011. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Querido Ellacu: É uma ficção escrever-te, porém talvez deste modo nos digamos a nós mesmos coisas que podem ser importantes. E com isso também quisera ambientar um pouco o aniversário de teu martírio. Vou falar-te de três coisas de atualidade, tais como as vejo, as quais têm que ver com o que tu foste e disseste.
1. O "sempre" do povo crucificado. Já não se fala muito de "povos crucificados" como o fizeste tu e Monsenhor Romero, chegando a essa genial formulação, creio que independentemente um do outro e guiados pelo mesmo espírito salvadorenho e cristão. E menos ainda se insiste em que esse povo crucificado é "sempre" o sinal dos tempos como o escreveste no exílio de Madri. A razão para esse silêncio não é que volte a estar em voga o pensamento utópico de Ernst Bloch, filósofo, ou de Teilhard de Chardin, teólogo. Tampouco é que o mundo esteja melhorando, pois continua gravemente enfermo, como disseste em teu último discurso. Creio que a razão é que hoje há menos profetas e que piorou a honradez com o real. Falar do "sempre" não só não é politicamente correto, senão que é loucura impensável. Porém não é preciso dar-lhe voltas. Continuam existindo Haiti e Somália, e entre nós se propagou uma nova epidemia: o homicídio. De 12 a 15 assassinatos diários nos últimos anos. É a enfermidade que produz mais mortes. O "light "avançou muito no modo de pensar e o politicamente correto se apoderou da linguagem: "vulnerabilidade", "os menos favorecidos", "países em vias de desenvolvimento". Nada soa mal.
Por isso, mencionar o "sempre" do povo crucificado parece ser coisa de masoquistas não redimidos. Porém não é assim. No país sempre chove cada ano e sempre há torrentes, destruição e morte. Mas, também são sempre os mesmos que sofrem as consequências, os que vivem em desfiladeiros, em favelas e casas pobres. A pergunta de Gustavo Gutiérrez continua sendo a pergunta fundamental: "onde dormirão os pobres?". Há povos depredados como o Congo, povos ignorados como Haiti, povos inundados, como os nossos... Continuam sendo o povo crucificado.
E os ricos e poderosos? Sempre sofrem alguns danos, porém quase sempre os superam sem muito custo. E nada digamos das crises financeiras. Investem-se bilhões de dólares ou euros para não se fundir o sistema. O povo crucificado não dá a vida, por suposto, porém os povos ricos sim, e ademais têm a profunda convicção de serem os escolhidos: dão, por suposto, a vida, e estão convencidos de que o bom viver lhes é devido. Se lhes ocorre algo grave elevam a realidade a escândalo metafísico. Porém, se ocorrem coisas muito mais graves na África ou no Bajo Lempa [em El Salvador], não há tal escândalo. Pertence ao existencial histórico de terem nascido pobres. É o "sempre" do pecado.
Porém quero acrescentar, Ellacu, e insistir em que há também outro "sempre". Há muita gente honrada que trabalha para que "o povo inundado – falamos de El Salvador – não acabe morrendo como "povo deslocado" ou como "povo afogado", A entrega e a bondade também têm seu "sempre". É o sempre da graça.
E às vezes surge um Dean Brackley. Quando lhe dizem que muitos rezam por ele, contesta com muita simplicidade: "Rezem pelos que têm câncer e não podem ter a atenção médica que eu tenho. E rezem pelos que nestes dias ficaram sem casa e sem comida". Retornaremos a Dean.
2. "O que fazer com os bons". A pergunta pode causar estranheza, porém me foi imposta, devido à agitação que causou a audiência de Madri. Trabalhar para que se julgue os responsáveis últimos de tantos assassinatos neste país, os de vocês e os de duas mulheres inocentes, é coisa muito boa e muito necessária. Pode trazer muitos bens. Pode ser uma grande ajuda, e muito necessária, para que se acabe, ou diminua a impunidade.
Por certo não saiu nos noticiários, porém muito nos alegramos de que os militares argentinos que em 1976 ordenaram o assassinato do bispo Enrique Angelelli, sejam julgados 35 anos depois. É um exemplo, pouco extenso, de que a verdade pode triunfar sobre a mentira e o encobrimento, que têm milhões de dólares e armas sofisticadas a seu serviço: que a justiça pode triunfar sobre a crueldade e a vileza; que a civilização da impunidade, muito afim à civilização da riqueza contra a qual nos advertiste fortemente até o final, se veja um pouco freada. Com o julgamento dos militares argentinos não desaparecem todos os males e o mundo do capital, ainda com alguns avanços e algo de democracia, segue produzindo vítimas impunemente. E conseguiu criar uma civilização do encobrimento, embora sempre haja quem o desmascare de diversas formas: bispos como Casaldáliga, ou "os indignados"... Esperamos que a audiência de Madri tenha êxito e que em El Salvador ocorra o que houve na Argentina, embora, evidentemente, haja forças poderosíssimas que estão contra de que isso ocorra.
Nesta situação, me veio à mente uma pergunta que pode parecer estranha. Dito com simplicidade, parece que sabemos o que fazer "com os maus", de modo que nosso proceder com eles produza bens, por suposto: instaurar verdade e justiça no país, chegar a oferecer perdão – embora mais difícil que perdoar é deixar-se perdoar. E há gente muito boa que trabalha em favor disso.
Também sabemos, ao menos em princípio, o que fazer com as vítimas: o que Puebla diz que Deus faz com os pobres, "tomar sua defesa e amá-los". E estas não são, em absoluto, palavras inocentes, pois tomar sua defesa supõe inevitavelmente entrar em graves conflitos com aqueles que os oprimem. Significa entrar "na luta pela justiça", "a luta crucial de nosso tempo", como o disse a Congregação Geral XXXII. Não muitos o fazem, porém a idéia é bem clara.
Mas, sabemos o que fazer "com os bons", com os santos? Certamente, pô-los a produzir, aprender deles, de suas idéias e convicções e seus modos de atuar... E agradecer-lhes. É o que costumamos dizer e procuramos fazer.
Porém nos interrogamos verdadeiramente o que fazer com eles? Topamos nestes dias com a pergunta sobre o que fazer com Dean Brackley. Velamos e acompanhamos seu cadáver. O amor e o agradecimento transbordaram, com lágrimas e gozo, em muitas celebrações, no cemitério.
Porém me permanece o desassossego de saber o que fazer com Dean, com Monsenhor Romero, com pessoas como vocês. Com Jesus de Nazaré. A resposta é simples: ser como eles, segui-los em seu fazer e em seu ser, imitá-los, historizadamente, como tu dizias. Em definitivo, deixar-nos afetar "pelos bons" e os santos em nosso fazer. E mais profundamente ainda em nosso ser.
Entenda-me bem, Ellacu. Bom e necessário é saber reagir ante o que fazem "os maus", e atuar adequadamente com eles. Bastantes pessoas e instituições o fazem. Porém creio que devemos avançar na forma de reagir como é devido ante "os bons", tentando ser como eles. Difícil, sim. Porém necessário para humanizar este mundo. E também esta igreja.
3. Dean Brackley. Ellacu, estas palavras terão ressonância para ti. "Com Dean Brackley Deus passou entre nós". Penso que não haja maior confissão de fé do que afirmar que Deus continua passando por nosso mundo. É a fé que mais me locupleta. E como Deus se faz presente em seres humanos, elas e eles, jovens e velhos, salvadorenhos e norte-americanos, mártires e confessores, como se dizia antes, o mistério se desdobra de muitas formas, convergentes, e assim é um mistério maior. Deus passou com D. Oscar Romero e Deus passou com Dean.
Nos muitos testemunhos desta Carta às Igrejas – Amor e Testemunho o intitulamos – se narra essa passagem de Deus. Escolho apenas um, o da doutora Miny: "Dean, I love you so much... for ever" [Dean, amo-te tanto... para sempre]. É linguagem bela e de eternidade. Linguagem que remete a Mistério. Também Dean, semanas antes de morrer, falou em seu testamento da passagem de Deus, nele, com grande humildade, simplicidade e lucidez. Agora, em outra linguagem, mais conceitual, porém espero que compreensível, quero falar-te de Dean ante Deus e de Dean com Deus.
O primeiro é que Dean morreu empapado de Deus. Assim o vejo, embora nesse mistério só se possa entrar nas pontas dos pés. Em seu último livro conta Dean seus problemas com Deus, suas épocas de agnosticismo, que não foi coisa de pouca monta. Recordou-me algumas palavras tuas de junho de 1969 que citei muitas vezes: "Rahner leva com elegância suas dúvidas de fé", e pensei que algo semelhante ocorria a ti. Porém ao longo do livro, Dean oferece sua própria fé, profunda e simples, e muito real. E os leitores ficam surpreendidos ao ler o prólogo escrito pela encarregada da editorial para julgar sobre a qualidade do livro. Ela se reconhece agnóstica, sem que o assunto de Deus a preocupe muito. Porém confessa que, lendo o texto, seu interesse profissional se converteu em interesse existencial, pessoal. O texto a levou a Deus, e Dean a batizou um ano depois. Lutando com Deus, como Jacó, o deixando-se seduzir por Deus, como Jeremias, Dean chegou a Deus. E ficou empapado de Deus.
Nesse processo Dean confessa com imensa gratidão que se encontrou com os pobres. Quantas vezes escreveste, Ellacu, que os pobres são o lugar do evangelho e o lugar de Deus. E também recordo as palavras de Porfírio Miranda: "O problema não é buscar Deus, senão buscá-lo lá onde Ele disse que estava. Nos pobres". É certo que nem sempre se encontra Deus, mesmo estando entre os pobres, pois entre eles e trabalhando por eles, há agnósticos que são esplêndidos seres humanos, e continuam sendo agnósticos. Porém na maior tradição de Jesus, o Deus que se encontra entre os pobres tem um sabor especial. Penso que a misericórdia se pode tornar mais delicada, a justiça mais firme, a verdade mais sem componentes e a fidelidade mais sem medir os custos.
O Dean empapado de Deus foi um exemplo notável de interesse por todas e cada uma das pessoas com as quais conviveu e as quais buscou. Todas e cada uma delas, companheiros jesuítas, familiares, paroquianos de Jayaque e da UCA, amigos e amigas, salvadorenhos, norte-americanos e europeus e, por suposto, os deserdados e pequenos tinham um nome muito concreto para ele. Cada um era intercambiável com outros e isso fez com que seu serviço fosse de grande fineza. E me recorda Jesus que conhecia todas as suas ovelhas por seus nomes.
E seu Deus foi, na verdade, o da criação. Não por moda, algumas das quais são muito boas, Dean pôs grande interesse na mulher e no feminismo, no ecumenismo, e era muito amigo de pessoas de outras igrejas, ou da ecologia e creio que até das causas indígenas. Os argumentos fundamentais não eram categoriais, nem tomados de normas da hierarquia nem da doutrina social. Creio que para Dean o grande argumento era que Deus é um Deus de todos.
Dean me recordou umas palavras de Monsenhor Romero que citei muitas vezes. São de 10 de fevereiro de 1980, em meio da barbárie que reinava no país. Disse Monsenhor: "Quem me dera, queridos irmãos, que o fruto desta pregação fosse que cada um de nós fôssemos encontrar-nos com Deus e que vivêssemos a alegria de sua majestade e de nossa pequenez!" Para Monsenhor Romero Deus não apequenava o homem, porém para o homem era bom apequenar-se ante Deus.
Isto me recorda Dean. Nunca pensou que era grande. Nunca se pôs em primeiro lugar, nem falava de si mesmo quando as coisas saíam bem: – "foi um sucesso" – embora as tivesse feito ele. Simplesmente se alegrava do bem. Recordava-me Paulo em sua carta aos Coríntios: "O amor é paciente, é afável, o amor não tem inveja, não se jacta nem se envaidece, desculpa sempre, confia sempre, espera sempre, agüenta sempre". Nisto Dean me recordava o grande Padre Arrupe. Creio que sempre pensou nos demais antes do que em si mesmo. Nunca se preocupou em que reconhecessem o bem que fazia. Não é frequente, e por isso surpreende e impacta. E ajuda também a desabsolutizar-nos e a viver com alegria nossa pequenez ante Deus, como dizia Monsenhor.
Uma última reflexão. Ellacu, Dean não morreu mártir como vocês, porém seus últimos meses foram um martírio, de corpo pelos sofrimentos de um câncer de pâncreas muito doloroso, e de alma quando lhe assaltavam medos, de sentir-se só, ou que não se lembrassem dele. Não morreu crucificado, porém viveu até o final participando ativamente das cruzes deste mundo. Trabalhou com poder, isto é, com força e energia, para baixá-los da cruz. E morreu com amor silencioso e indefeso. Como o Deus crucificado.
As últimas palavras de Dean são palavras de gratidão, a fundo perdido, sem poder pôr pé em terra firme. Porém a gratidão vive de outros e para outros, de Deus e para Deus, Os agradecidos podem fazer que a realidade seja graça. Ellacu, se me permitem a expressão – creio que é um neologismo – os agradecidos podem "buenar" (tornar boa) a realidade. É o que fez Deus.
Ellacu, já vês que, em meio de muitos males e apesar de tudo, estamos contentes. Vocês, Julia Elba e Celina, Jon Cortina e o padre Ibisate, e agora nosso querido Dean Brackley, estiveram conosco. E estando com vocês Deus esteve conosco. Não se pode pedir mais.
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"Hoje há menos profetas e piorou a honradez com o real". Carta de Jon Sobrino a Ellacuría - Instituto Humanitas Unisinos - IHU