09 Junho 2011
Estamos em plena descivilização. E fica cada vez mais forte para muitos homens e mulheres do planeta a tentação de um retorno ao estado natural, isto é, a uma condição barbárica em que todos estão em guerra contra todos.
A afirmação é do célebre sociólogo francês Alain Caillé (foto), autor do Manifesto do convivialismo e fundador, junto com Serge Latouche e Jacques Godbout, do Mauss, o Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais, inspirado no antropólogo Marcel Mauss, o autor do Ensaio sobre o dom, um texto que mudou a história das ciências humanas. E que deu aos três paladinos da economia gentil e do decrescimento o feliz apelido de os três mauss-queteiros.
A entrevista foi conduzida pelo antropólogo italiano Marino Niola, publicada no jornal La Repubblica, 09-06-2011. A tradução é de MoisésSbardelotto.
Eis a entrevista.
Para o senhor, o problema de hoje é como reescrever o contrato social. Não mais em escala nacional, mas sim global.
É a questão fundamental. Depois dos totalitarismos do século XX, o que tornou popular a democracia foi o bem-estar generalizado permitido por um crescimento econômico impetuoso.
Como se a democracia tivesse fidelizado os cidadãos com a promessa da riqueza para todos.
Todas as grandes ideologias políticas, do liberalismo ao socialismo, se basearam em um pressuposto utilitarista, isto é, sobre a ideia de que a condição necessária para a paz social é um nível de vida suficiente para todos. O problema é que, no Ocidente e no Japão, o crescimento se deteve. O crescimento que existe é só nominal. Financeiro e imobiliário. Mas, para os trabalhadores e para a classe média, há 30 anos, o padrão de vida não aumentou. Ao contrário. E, para seus filhos, o horizonte é obscuro.
Em compensação, a Índia e a China têm taxas de crescimento vertiginosos. O futuro está lá?
O grande risco para esses países é que o seu crescimento também se detenha antes que a maioria da população tenha atingido um nível suficiente de vida e de liberdades democráticas. Sem falar dos custos ecológicos, sociais, da insuficiência de matérias-primas, dos riscos nucleares. Muitas hipotecas sobre uma perspectiva de desenvolvimento infinito.
Qual a saída?
A questão é se podemos fundamentar a democracia sobre algo estável e duradouro que não seja simplesmente o crescimento econômico. Mas sim um "estado econômico estacionário". Em equilíbrio.
Em outras palavras, o senhor propõe que se repensem os fundamentos simbólicos da democracia.
Sobretudo os econômicos. No fundo, a modernidade nasceu da ideia do contrato social, um conceito tirado diretamente da economia. A vida em sociedade tem a função de proteger os interesses individuais. Até a Declaração dos Direitos Humanos tem exatamente esses fundamentos. Devemos respeitar uns aos outros para criar uma esfera privada, em que cada um possa realizar sua própria renda.
O senhor quer dizer que a globalização corre o risco de dispensar essa ideia de democracia, fazendo-a implodir?
Certamente. É por isso que é preciso inventar uma democracia, digamos assim, antiutilitarista, desejável por si só, não por razões instrumentais, mas sim porque é a sociedade boa que permite uma vida boa. Eu chamo isso de Convivialismo. E o considero uma ideologia política totalmente a ser inventada, sobre as cinzas do socialismo e do liberalismo.
Em uma perspectiva convivialista na base da sociedade, estão o dom e o bem comum, não mais o interesse privado e o enriquecimento a qualquer custo. Não é uma utopia?
O dom está na própria origem do laço social, é o gesto primário que faz com que o indivíduo saia de si mesmo e o liga aos outros. E este momento fundador é incondicional, gratuito. Não por acaso todas as religiões nasçam de um dom feito ao deus. E que o deus retribui.
Na Itália, há os referendos sobre a água e a energia nuclear. Como o senhor votaria?
A água deve continuar sendo um bem comum, por isso eu votaria "sim". Sobre a energia nuclear, tempos atrás, eu era agnóstico, mas agora, assim como a maioria dos franceses, sou antinuclearista. Salientaria também o fato de que esses referendos oferecem a todos os cidadãos a oportunidade de se expressarem em primeira pessoa sobre temas tão vitais e é o sinal de que, quanto à democracia difundida, a Itália está mais à frente de outros países europeus. A questão dos bens comuns é o teste decisivo do estado de saúde de uma democracia. Onde não há outra lei para além da do mercado, não há lugar para os bens comuns, para aqueles bens compartilhados que pertencem à humanidade. Não podemos nos esquecer de que organizações como a ONU e a Unesco estavam todas baseadas na ideia de que o progresso passa através do acesso livre gratuito aos bens comuns.
O neoliberalismo faz passar as suas receitas econômico-sociais por necessidades objetivas – economia, racionalização, conveniência, concorrência.
A ideia neoliberal de que a força motriz essencial do ser humano é só a de maximizar prazeres, conforto e propriedades, em uma palavra utilidade, é pura ideologia, contrariada pelos fatos. O Homo não é só oeconomicus, e as relações entre indivíduos não são só mercantis.
A prova disso é a difusão sempre maior de comportamentos sem o objetivo do lucro. Dom, voluntariado, captação de fundos, organizações sem fins lucrativos, pessoas que dão seu tempo aos outros, além de dinheiro, solidariedade e até os seus próprios órgãos e o seu próprio sangue.
Hoje, uma das reações às desigualdades econômicas é justamente a das trocas gratuitas e dos serviços públicos. Mas só a construção de uma nova ética pode tornar possível a sociedade do Convivialismo. Uma paixão quase religiosa, um impulso das consciências como os que estavam por trás do nascimento do liberalismo ou do socialismo. Sem sonhos coletivos e grandes ideais, o novo não avança.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Por uma sociedade convivial. Entrevista com Alain Caillé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU