28 Agosto 2014
"Em meados de 1975, uma comissão de camponeses representando mais de 300 famílias de posseiros da fazenda Betume, município de Neópolis, procurou o 1º bispo de Propriá, Dom José Brandão de Castro, pedindo-lhe ajuda para impedir que os tratores da CODEVASF destruíssem seus sítios, roças e casas", escreve Pe. Isaías Nascimento, membro do clero da Diocese de Propriá e mestre em Ciências da Religião.
Eis o artigo.
Ora, o que estava acontecendo naquele tempo é que a empresa governamental desapropriou as fazendas que margeiam o rio São Francisco, desde o município de Telha até Brejo Grande, a pedido da própria Igreja, em meados dos anos 50, e reforçado por Dom Helder Câmara no dia 20 de outubro de 1968, durante a celebração dos 250 anos da Paróquia de Propriá. A CODEVASF indenizou os fazendeiros, até atualizou os valores sob ordem judicial, e despejou os posseiros e seus agregados sem nada. O bispo formou uma comissão de padres, agendou com os camponeses e com o Mons. Moreno, pároco local. O missionário frei Roberto Eufrásio fez parte daquela comissão e registrou o fato dizendo que a reunião aconteceu debaixo de uma grande mangueira e que o clima era de revolta e de tensão. Um trabalhador lhe pediu que fosse o Moisés daquelas famílias:
Desta audiência dos clamores fomos com nosso bispo ao escritório da CODEVASF, a fim de chamar a atenção do dirigente da empresa para as injustiças praticadas contra aquela população, exigindo providências. A Diocese colocou assessoria jurídica da CPT a serviço dos trabalhadores. Então eu, Raimundo Eliete nos juntamos à comunidade do padre Nestor, irmãs Teresinha e Francisca para fazer o trabalho de orientação dos trabalhadores. Foram anos de muita tensão, de muita entrega aos pobres de Deus, de percorrer de lugar em lugar toda aquela região, enfrentando os técnicos da empresa que enganava a população.
O caso do Betume mudou a vida de Dom José Brandão e deu uma revirada pedagógica na pastoral da Diocese de Propriá. Dom José registrou que
Não me esqueço de que foi no Cap. 34 de Ezequiel que me inspirei para escrever a Carta Pastoral de 6 de junho de 1976, ponto marcante de minha “conversão” definitiva para os pobres. Já no Concílio, por volta de 1964, eu tinha aderido ao grupo que optou pela Igreja dos Pobres, mas, por incrível que pareça, a expressão concreta mesmo dessa mudança de posição somente se deu mais tarde. Foi quando do inicio do caso do Betume. Na minha Carta Pastoral de 6 de junho de 1976, fiz como uma paráfrase do Profeta Ezequiel:
“Vai cuidar do meu Povo, o meu rebanho.
Vai tratar das ovelhas magras ou feridas,
Fortalecer as fracas e doentes.
Vai procurar também as ovelhas perdidas.
Vai cuidar do meu Povo, o meu rebanho.
Por falta de pastores está entregue às feras,
Quer nas praias do mar, quer nas margens dos rios, No agreste, no sertão, nas roças e povoados.
Nos casebres de taipa ou nas choças de palha.
Vai cuidar do meu povo, o meu rebanho”.
Repito, não resta dúvida que foi o caso do Betume que abriu meus olhos. Aí compreendi que a gente precisava mesmo de bandear, como disse há pouco, para a opção preferencial pelos pobres, opção que eu já havia feito no Concílio, quando surgiu o movimento, em nível internacional, conhecido também como “Igreja das Catacumbas”, porque o pacto oficial feito por numerosos Bispos se deu numa das Catacumbas da Cidade Eterna.
A partir do caso do Betume houve mudança na metodologia pastoral. Iniciava-se a transição do assento assistencial ou promocional, em que o bispo fazia para o povo de Deus, entendendo este o povo dos pobres, como no período de sua fundação em outubro de 1960 até aquela data, para a libertária. Agora, a Igreja diocesana de Propriá ouvia os clamores dos pobres, o rosto de Jesus, sofredor, crucificado, na região do baixo São Francisco. Este povo era maioria absoluta da população do baixo São Francisco. Seus clamores ajudaram a Igreja local a compreender melhor o eixo motivador da evangelização assumido no Plano de Pastoral aprovado em 1971:
Queremos refletir mais detidamente sobre a opção que foi feita pela Igreja Universal no Concílio Vaticano II, retomada com maior empenho pela Igreja Latino-Americana em Medellín em 1968, e assumida, de uns tempos para cá, pela Igreja de Deus que está na Diocese de Propriá. Essa opção é pelos pobres, pelos marginalizados. Nosso trabalho, por decisão tomada em comum, há mais de oito anos, ficou assentado em três pontos: - descobrir e incentivar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); - dar ensejo a todos de conhecer melhor o Evangelho de Cristo e suas exigências através da Catequese; - descobrir, prestigiar e ratificar os diversos ministérios que podem ser exercidos pelos leigos. b) Queremos formar uma família cada vez mais unida, onde as dores e as alegrias de cada um sejam compartilhadas por todos, segundo a oração de Jesus: “Que todos sejam unidos!” c) Queremos descobrir os caminhos de uma fidelidade sempre maior à Igreja de Jesus Cristo, unidos ao Papa (...) no governo da Igreja Universal, e queremos ser fermento para um mundo mais humano, em que um irmão não seja mais oprimido por outro irmão (A Defesa, 10/10/1971, p. 4).
A Diocese de Propriá manteve-se unida contra a exploração do seu povo e com ele lutou por justiça social e reforma agrária, emprestando sua voz, a fim de conquistar uma vida mais digna. Ela se expôs em várias arenas, se utilizando da mídia de modo geral. Atraiu apoio de várias classes sociais, categorias estudantis e profissionais, de ponta a ponta do Brasil e do exterior. Foi este mutirão pela justiça social que deu sentido e vitória à organização dos camponeses do Betume; do povo indígena Xokó, que deu início à retomada de seu território de uma légua em quadro, no dia 09 de setembro de 1978, começando pela Ilha de São Pedro, concluído nos anos 80, enfrentando membros da família Britto; dos camponeses de Santana dos Frades, ocorrido em 1978, até os anos 80; dos moradores do Povoado Ilha do Ouro, Porto da Folha, que em 1980, se libertaram do fazendeiro Antonio Tavares. E, como bem disse frei Enoque, todo esse mutirão de libertação não pode ser contato sem o apoio dos “sindicatos rurais, FETASE, partidos de esquerda, estudantes e entidades. Era o tempo negro da ditadura, onde inclusive o Bispo, Padres, Trabalhadores... foram presos, perseguidos e torturados”.
Enfim, podemos salientar alguns aspectos relevantes que no período de Dom José Brandão à frente da Diocese de Propriá, de outubro de 1960 a dezembro de 1987 :
I - Dom José Brandão, desde cedo, principalmente durante a realização do Concílio Vaticano II, somou-se à ala progressista do episcopado brasileiro, em vários aspectos. Um deles foi sua adesão à defesa de novas formas ministeriais para que a Igreja pudesse acompanhar a mobilidade humana do povo de Deus no Brasil e no mundo, até hoje recusado pela Cúria Romana. Segundo e principal aspecto foi o seu compromisso com a libertação dos pobres e suas causas. Diante do grau de miserabilidade que marcava a região do Baixo São Francisco, ele atuou como pastor no sentido literal da palavra.
II - O povo de Deus, entendido como povo dos pobres, eliminado do “vocabulário do Vaticano”, desconsiderado na reestruturação eclesial, está, há tempos, se autoeliminando da Igreja.
III – O bispo de Propriá, Dom José Brandão de Castro, foi vítima real da conjuntura eclesial daquele tempo, do “rigoroso inverno”, durante o qual a Cúria Romana decidiu desmotivar a pastoral dos anos 70/80 na Igreja latino-americana afinada à teologia de libertação, principalmente a do Brasil.
IV - A bandeira da reforma agrária, que antes pautava a pastoral através da CPT e EPT (Equipe de Pastoral da Terra), da Paróquia de Porto da Folha, passou a ser protagonizada pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-terra) e, posteriormente, por outras entidades (FETASE, MLT, Centro Dom Brandão, Cáritas Diocesana de Propriá), com apoio de vários agentes de pastoral da Diocese de Propriá, tanto dos brasileiros como dos belgas.
E, concluindo, importante salientar que a ação pastoral da Diocese de Propriá comprometida com os pobres provocou mudanças de vários paradigmas. Vejamos alguns:
a) A hierarquia, mesmo escassa - o bispo, os padres e religiosas - a partir dos anos 70, desceu à vida cotidiana do povo dos pobres, foi ao seu encontro, conviver com eles, no meio deles. Em suma, eles/as foram “às águas mais profundas”: havia uma equipe missionária formada pelos agentes de pastoral - padres, religiosos e leigos - que se revezava nas missões pela diocese, passaram pedagogicamente de uma missão de desobriga tradicional para uma missão que, a partir das devoções populares, anunciavam o evangelho e estimulavam a organização do povo pobre em Comunidades Eclesiais de Bases, construindo com eles a utopia. O centralismo clerical coloca a utopia sob controle do clero;
b) O pobre deixa de ser objeto da religião com uma prática caritativa assistencialista. Ele passa a ser o centro das atenções e, ao mesmo tempo, protagonista da evangelização libertadora, ajudando–o a vencer “esta consciência abafada sob a ação de uma tradicional sabedoria de conformismo e paciência fatalista” (Hoornaert, 1978, p.104);
c) Era uma evangelização inculturada. Se antes o sentimento religioso produzia um conformismo da realidade, a nova prática evangelizadora considerava a formação dos fiéis para a liberdade. As celebrações – as missas, as novenas e as festas de padroeiros - passaram do ritualismo desencarnado da realidade para ser a celebração da vida concreta da comunidade, preparadas pelos animadores/as da própria comunidade:
Concluamos nossa reflexão meditando este poema de Dom José Brandão de Castro :
Ideal Cristão
Ânsia de ser feliz, de ver outros felizes.
Desejo de espalhar o bem por toda parte,
tentativas de promover todos os homens,
de hominizá-los mais pela graça de Cristo!
E ver a fome, e a dor e a miséria e a maldade,
e o terrorismo, e o crime, e a inveja triunfarem,
ver o justo acusado, o idealista, vencido,
desistir de seu sonho e viver isolado!
Nem saber se o melhor é lutar sem descanso,
enfrentando a impostura, a exploração, o egoísmo,
sujeitando-se até à calúnia e à tortura,
nem saber se a coragem será indômita,
nem se amanhã será melhor que o dia de hoje e,
assim mesmo, esperar contra toda esperança!