Por: Patricia Fachin | 20 Abril 2017
Há quase duas décadas o conceito de antropoceno “saiu do campo acadêmico para conquistar o espaço público, tornando-se quase incontornável nos debates em torno do impacto das atividades humanas sobre o planeta”, diz Philippe Léna à IHU On-Line. O uso recorrente desse conceito, explica Liz-Rejane Issberner, se deve ao fato de ele reconhecer o “homem como agente geológico” e exemplificar que a “ação humana ao longo da história alcança uma magnitude tal que interfere no domínio da biosfera, com a emissão de gases de efeito estufa, diminuição da camada de ozônio, acidificação dos oceanos, perda da biodiversidade etc”.
Philippe Léna e Liz-Rejane Issberner são os organizadores do livro recém-publicado pela Routledge Environmental Humanities, intitulado “Brazil in the Anthropocene: Conflicts between predatory development and environmental policies”, o qual examina o papel do Brasil na crise ecológica global e apresenta uma reflexão sobre como as políticas nacionais e internacionais são influenciadas por fatores sociais, políticos, éticos, científicos e econômicos.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, os pesquisadores comentam os principais temas da publicação e analisam o desenvolvimento brasileiro à luz do antropoceno. Segundo a economista, o Brasil “experimentou diferentes ciclos de desenvolvimento na sua história, e cada um contribuiu à sua maneira para a dilapidação dos recursos naturais”. Na avaliação dela, a “política brasileira vai na contramão do que seria necessário no antropoceno”, especialmente porque tem incentivado a construção de “gigantescas usinas hidrelétricas” que “invadem” as áreas de florestas e as terras indígenas” e “provocam danos socioambientais irreversíveis”. “A autorização para a mineradora canadense Belo Sun atuar na mesma região do rio Xingu confirma o caráter predatório da proposta de desenvolvimento do poder público”, diz.
Segundo o pesquisador francês Philippe Léna, essa “noção de desenvolvimento” adotada no país “foi forjada no pós-guerra e, para os países industrializados, descreveu adequadamente um ciclo de crescimento que permitiu satisfazer tanto os donos do poder econômico quanto parte significativa da demanda social, à custa de uma drenagem de recursos do mundo inteiro e de um gigantesco impacto ambiental”.
Reprodução da capa do livro Brazil in the Anthropocene:
Conflicts between predatory development and
environmental policies
Liz-Rejane Issberner é economista e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT. Também leciona no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade do Rio de Janeiro.
Philippe Léna é geógrafo e sociólogo. É pesquisador emérito do Institut Français de Recherche pour le Développement – IRD e do Muséum National d'Histoire Naturelle - MNHN. Tem colaborado desde 1980 com instituições brasileiras de pesquisa, como o Instituto Nacional de Pesquisa - INPA, o Museu Emílio Goeldi do Pará - MPEG e a Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, realizando pesquisas sobre questões socioecológicas na Amazônia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que se considera o conceito de antropoceno relevante para discutir as questões ambientais, econômicas e sociais nos dias de hoje?
Liz-Rejane Issberner - Por muito tempo as ciências sociais e humanas foram vistas como estranhas ao tema ambiental, que era tido como campo de excelência de estudos da biologia, agronomia, engenharia florestal etc. A questão ecológica começa a ganhar espaço a partir do fim da II Guerra Mundial, registrada em vários livros — como a “Primavera Silenciosa” de Rachel Carlson em 1962. Essa obra foi discutida em conferências ambientais internacionais — sendo a primeira em Estocolmo, em 1972 —, defendida por movimentos e ONGs ambientais, como, por exemplo, o Fundo para a Vida Selvagem (WWF), criado em 1961 — uma das ONGs pioneiras na área ambiental — e representada em partidos políticos, como os partidos verdes do início dos anos 1970 em países Europeus. Desde então, a importância da questão ambiental foi se impondo diante da deterioração das condições de vida no planeta e transformações provocadas pelo modo de vida da espécie humana.
A imbricação das questões ambientais, econômicas e sociais, consideradas os três pilares do desenvolvimento sustentado, já é objeto de estudos e estudos acadêmicos nas ciências sociais e humanas. Contudo, a ascendência do conceito antropoceno confere a essas áreas a responsabilidade de pesquisar e dar explicações, seja sobre o papel das sociedades humanas como geradoras das mudanças ambientais globais, seja sobre os impactos dessas mudanças nas sociedades. Derivam-se daí várias questões de ordem política, ética, cultural, econômica, para ficar apenas no campo das ciências sociais e humanas.
As Ciências (todas elas) terão que desenvolver e encampar novos conhecimentos. Será preciso refundar a Ciência; haveria uma Ciência do/para o Antropoceno, pautada nas questões típicas desse novo período, tais como mudanças climáticas, escassez de água, perda de biodiversidade, desastres naturais, esgotamento de recursos naturais, desertificações, migrações, injustiça social e ambiental, pobreza etc. Que energia vai ser utilizada para produção? Que cidades, transportes e residências serão adequados? Que alimentos serão consumidos? Estes são alguns dos desafios a serem enfrentados. Enfim, formular as perguntas é um bom começo para fomentar o debate.
Philippe Léna - Usado pela primeira vez em 2000 por dois renomados cientistas (P.J. Crutzen e E.F. Stoermer), o conceito de antropoceno saiu em poucos anos do campo acadêmico onde nasceu para conquistar o espaço público, tornando-se quase incontornável nos debates em torno do impacto das atividades humanas sobre o planeta. Esse sucesso pode ser atribuído a seu caráter sintético (ele abrange a totalidade dos componentes da pegada ecológica mais as diferentes categorias de poluição), mas sobretudo à conscientização de que esses impactos sofreram uma mudança de escala radical na história recente (a “grande aceleração” do pós-guerra). Não se trata mais de “questões ambientais”, de “crise ecológica”, de “poluição” (por mais grave que seja): a espécie humana se tornou uma força que se equipara com forças geológicas e está fazendo desviar do seu rumo o que os especialistas chamam de “Sistema Terra” (veja as nove “fronteiras” estabelecidas por J. Rockström, das quais ultrapassamos quatro). Estamos criando assim uma perigosa irreversibilidade que leva ao que é comumente chamado de “colapso ambiental”. Apesar dos alertas de cientistas e instituições científicas, muitos ainda pensam se tratar de um horizonte longínquo que poderemos evitar graças à nossa tecnologia. Na realidade já estamos dentro do colapso ambiental!
O efeito mais conhecido do público é o aquecimento global, já perceptível, que vai modificar profundamente nossas condições de vida. Mas, entre outros efeitos globais, existe um que é menos falado e que também coloca em risco nossa sobrevivência: é a combinação da “perda de biodiversidade” (desaparecimento acelerado de espécies de plantas e animais) e da “defaunação” (redução drástica da população de animais de uma espécie). Esses dois fenômenos são a consequência da expansão da nossa espécie e de suas atividades, provocando a destruição de habitats e ecossistemas. Essa dinâmica é rápida e acelerada: estima-se que, nos últimos cinquenta anos, metade dos pássaros da Europa desapareceu e, a nível global, mais da metade dos vertebrados não domesticados (dois terços daqui a alguns anos).
Assim, mais do que qualquer outro conceito usado para caracterizar a questão ambiental, o de “antropoceno” permite destacar a escala do problema (globalidade e intensidade), seu agravamento rápido (urgência) e a responsabilidade humana. Mostra também que todos nossos esforços devem ser orientados para amenizar esse colapso em curso, de forma a tentar garantir nossa própria sobrevivência e a do que resta da natureza, as duas coisas sendo estreitamente ligadas. É doravante nesse quadro que devem ser pensadas as questões ambientais, econômicas e sociais.
O conceito de antropoceno convida a um questionamento renovado e universal sobre os meios e os fins. Ele permite um olhar distanciado e uma conscientização semelhante ao que aconteceu com as primeiras fotos tiradas do espaço, mostrando o globo terrestre na sua totalidade pela primeira vez na história.
IHU On-Line - Como cientistas de diferentes áreas se manifestam sobre esse conceito?
Liz-Rejane Issberner - O conceito de antropoceno reconhece o homem como agente geológico. A ação humana ao longo da história alcança uma magnitude tal que interfere no domínio da biosfera, com a emissão de gases de efeito estufa, diminuição da camada de ozônio, acidificação dos oceanos, perda da biodiversidade etc. A popularização crescente do termo antropoceno vai retirando de cena os entulhos dos argumentos que foram deixados pelos climatocéticos, que durante muito tempo combateram, por interesses nem sempre científicos, a ideia de que o aquecimento global não tinha comprovação e, após a superação desse debate, que o homem não poderia ser responsabilizado pelo fenômeno.
O livro apresenta uma discussão sobre como diversas áreas abordam o antropoceno. Para os estratigrafistas, os estratos geológicos analisados atestam que os sinais deixados pelas atividades humanas são globais, claros e fortes o suficiente para justificar a demarcação de uma "época humana". Para os cientistas que estudam o aquecimento global, a questão é quando se pode precisar a entrada do Sistema Terrestre em uma época de mudança antropogênica. Historiadores e cientistas sociais questionam a escolha do termo "antropoceno", pois coloca a responsabilidade pelo que acontece no planeta sobre a espécie humana em geral e não sobre o sistema econômico, social e político, ou seja, sobre o capitalismo, ou o modo de vida ocidental. Mas, de fato, o conceito de antropoceno e seu significado ainda é desconhecido para muitos pesquisadores de diversas áreas do conhecimento.
IHU On-Line - Que discussões têm sido geradas por conta do uso desse termo?
Liz-Rejane Issberner - Até recentemente alguns cientistas contestavam dados e argumentos relacionando as mudanças climáticas à atividade humana, o que atualmente já não é tão usual ao menos na esfera científica. No campo das ciências sociais, uma das discussões é sobre a necessidade de se diferenciar a responsabilidade da espécie humana sobre as mudanças, adotando uma perspectiva histórica e destacando o processo de construção social do antropoceno. Jason Moore propõe o termo capitaloceno, alegando que a mudança se deu a partir da transformação da relação homem-natureza no final do século XV, que promoveu a acumulação de capital e novas relações sociais, propiciando o surgimento do capitalismo. Bonneuil também critica o nome atribuído, propondo o termo “ocidentaloceno”, que melhor retrata o período histórico que provocou as mudanças. Talvez a disputa sobre a forma de denominar o período atual não seja tão relevante; seria preferível adotar e fortalecer o termo antropoceno, admitindo as várias formas de caracterizá-lo.
IHU On-Line - Que tipo de desenvolvimento econômico e social as políticas públicas brasileiras têm favorecido? Por quais razões o desenvolvimento brasileiro é considerado predatório?
Liz-Rejane Issberner - O país experimentou diferentes ciclos de desenvolvimento na sua história, cada um contribuiu à sua maneira para a dilapidação dos recursos naturais. Basta olhar os dados e mapas para constatar de forma inegável a diminuição das áreas florestadas, a diminuição das nascentes e reservas de água doce, o desaparecimento de espécies animais e vegetais, entre outros muitos danos ambientais. O Brasil segue a mesma lógica da maioria dos países onde o crescimento econômico contínuo é a base para alcançar bem-estar social. Países como o Brasil perseguem a estratégia chamada “cathing-up” para driblar o atraso em relação aos países desenvolvidos e nisso justificam o uso predatório de recursos. Em vez de atacar a má distribuição de renda no Brasil, as políticas privilegiam o crescimento, que reproduz o mesmo esquema da desigualdade, só que num patamar de renda mais elevado. Em períodos de baixo crescimento, ou de crescimento negativo, as condições de vida da população se degradam drasticamente, como no momento atual. Os modelos de desenvolvimento adotados até aqui não são apenas predatórios, são também injustos.
O modelo de desenvolvimento econômico brasileiro se baseia no uso intensivo de terra, água, minerais e outros recursos naturais. Exemplos da utilização predatória de recursos naturais são inúmeros desde a chegada dos colonizadores nas Américas, mas o ritmo da depredação se acelerou após o fim da segunda guerra mundial. A era do automóvel, do petróleo, da abertura de estradas, do êxodo rural e consequente inchamento das cidades, da monocultura da soja e da agropecuária em geral promoveu o agravamento da crise ambiental, sem, contudo, combater de forma efetiva as desigualdades sociais no Brasil, com a sua distribuição de renda perversa.
O país possui uma agricultura conectada ao competitivo mercado global de commodities, mas carrega a herança maldita de jamais ter realizado uma reforma agrária. A concentração fundiária pode ser constatada nos dados do último Censo Agropecuário que mostra que os grandes estabelecimentos rurais (> 20 hectares) representam 0,91% do total, mas ocupam 45% do total da área rural. Decorre desse quadro de desigualdades a violência no campo, assim como a pressão política contra a demarcação de terras indígenas e áreas de preservação, o desmatamento ilegal etc.
IHU On-Line - De que modo, especificamente, os investimentos brasileiros em mineração e agronegócio contribuem para a degradação ambiental no Brasil?
Liz-Rejane Issberner - A política brasileira vai na contramão do que seria necessário no antropoceno. Recentemente, no governo Dilma, a implantação de um modelo de desenvolvimento baseado na expansão do mercado interno e no consumo de massas, demonstrou a opção pelo modelo hegemônico adotado nos países mais avançados, com todos os seus problemas ambientais e sociais. A desconsideração com a questão socioambiental pode ser constatada com as medidas adotadas para estimular a indústria automobilística (questiona-se aqui se não poderia ter estimulado o transporte público ou alternativo). O governo concedeu isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI para os automóveis novos, sem nenhuma contrapartida de inovações voltadas para a diminuição dos danos ambientais. A questão ambiental é vista por alguns políticos e produtores como um entrave ao desenvolvimento econômico. A pressão de segmentos político-empresariais para derrubar exigências socioambientais na instalação de empreendimentos é muito forte, assim como para frear e rever a demarcação de terras.
As gigantescas usinas hidrelétricas — que agora invadem também a região de floresta e de terras de indígenas e de populações tradicionais — provocam danos socioambientais irreversíveis. A autorização para a mineradora canadense Belo Sun atuar na mesma região do rio Xingu confirma o caráter predatório da proposta de desenvolvimento do poder público. Os conflitos sociais resultantes dos grandes projetos de produção de energia e da expansão da agropecuária põem em risco os direitos de grupos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e demais populações tradicionais, qualificados como obstáculos ao progresso.
IHU On-Line – Que cenário vislumbram para o futuro, caso a extração de recursos continue no ritmo em que é feita hoje?
Philippe Léna - Os cenários são um pouco diferentes se considerar o extrativismo no seu sentido restrito (extração de recursos não renováveis) ou no sentido mais geral que se impõe hoje e que inclui recursos (teoricamente) renováveis. No primeiro caso se trata de recursos minerais ou de recursos energéticos fósseis (carvão, petróleo e gás) convencionais ou de fontes não convencionais, como xisto, areias betuminosas e off shore profundo. A não ser para alguns metais raros (e usados nas tecnologias de ponta), não existe limitação quantitativa no curto prazo, porém existem dois tipos de limites: um é o impacto socioambiental, outro é a relação entre o custo de exploração e um preço economicamente viável (EROI [sigla em inglês para retorno energético sobre o investimento] no que diz respeito ao setor energético). Os dois podem se tornar insuportáveis a curto prazo. Assim a exploração de petróleo pode consumir rapidamente o “orçamento” de emissões aceitável até chegar ao patamar de zero emissões líquido em torno de 2050 (vale notar que esse “orçamento” é constantemente reavaliado para baixo).
No segundo caso se trata da superexploração de lençóis freáticos, da agricultura industrial que empobrece os solos e da exploração de recursos naturais além da sua capacidade de regeneração. De modo geral, com o aumento da demanda global e o caráter finito dos recursos (em termos relativos ou absolutos), podemos prever um acirramento dos conflitos violentos e um desrespeito crescente aos direitos das populações tradicionais e à proteção do meio ambiente. Esse processo está em curso e está aumentando (ver o livro de Anna Bednik: Extractivisme) mesmo que tenha sofrido um certo desaquecimento por causa da diminuição da demanda da China.
Um relatório recente de peritos da ONU alerta sobre o caráter finito de um recurso que nos parecia perene ou renovável: o solo. Seu ritmo de regeneração (que exige a manutenção de cobertura vegetal) é muito lento e a agricultura industrial o esgota muito mais rapidamente. No nível global só teríamos 60 anos de colheita no ritmo atual (isso sem contar com outros fatores, tais como a artificialização do espaço, a poluição etc.). O relatório aconselha adotar com urgência as práticas da agroecologia (como o fez, aliás, um relatório anterior da FAO). Sabemos também que o desflorestamento das regiões tropicais por causa da expansão da criação de gado, caso da Amazônia, ou da cultura da palmeira africana (Elaeis guineensis ou “dendê”) no sudeste asiático, tem seu equivalente nas florestas boreais que desaparecem a um ritmo ainda mais rápido, transformadas em combustível para projetos industriais ou utilizadas para a fabricação de papel. O tamanho da demanda leva à destruição desses preciosos ecossistemas, e só pode aumentar. A pressão exercida por associações, ONGs e órgãos internacionais pode frear levemente essa dinâmica (boicote, denúncias, levando à adoção de práticas menos danosas), mas não pode lutar contra a lógica de mercado que leva à expansão espacial contínua da exploração, à procura pela diminuição dos custos (predação) no intuito de rentabilizar o capital aplicado num contexto de concorrência desenfreada. Na ausência de uma mudança profunda, civilizatória, a tendência é de avançar cada vez mais rapidamente no caminho do colapso.
IHU On-Line - Alguns têm defendido um decrescimento “demoeconômico”. O que isso significa na prática? Em que aspectos essa ideia se contrapõe à nossa realidade atual?
Philippe Léna - Embora represente uma simplificação extrema (que não leva em conta a poluição química e radioativa, ou o colapso em curso dos oceanos, por exemplo), a divulgação da pegada ecológica da humanidade teve um papel importante na tomada de consciência do tamanho do problema. Dito de forma brutal, estamos “consumindo” 1,6 planetas. Isto é, o nível atual de consumo já é insustentável. Digamos que 1,5 bilhão de pessoas sejam responsáveis por 80% desse consumo, a maior parte dos 6 bilhões restantes tem como objetivo legítimo consumir da mesma forma que a classe média dos países industrializados. Isso sem falar dos 2,5 bilhões de novos terráqueos por vir até 2050 (isto é, amanhã). Nos moldes atuais, isso é simplesmente impossível.
Demografia e consumo material são estreitamente interligados na produção da pegada ecológica - PE; simplificando, podemos dizer que à medida que uma população entra na sociedade industrial, seu impacto per capita aumenta (o que chamamos de “desenvolvimento”), por isso os países industrializados têm uma PE per capita no mínimo 3 a 4 vezes superior à de um país não industrializado ou pouco industrializado. Se esses países “desenvolvidos” conseguissem dividir sua pegada ecológica por 3 ou 4 (o que é uma exigência incontornável), a questão não seria resolvida: os 6 bilhões (9 em 2050) de habitantes hoje considerados em desenvolvimento também não poderiam passar de uma PE equivalente a 1 planeta, o que implica mudar radicalmente de rumo. Mas não há indícios de que se orientem nessa direção, ao contrário, todos estão seguindo o mesmo modelo dos países industrializados e estão no caminho de alcançar também, cedo ou tarde, uma pegada de 3 ou 4 planetas (ao menos se isso fosse possível). Na realidade, não se trata de uma escolha, já estão inseridos na teia de reprodução do capital e no imaginário que o acompanha.
Aqueles que defendem a continuação do modelo atual apostam no aumento da eficiência (menos energia e matéria por unidade de produto) e na consequente “desmaterialização” da economia e dos processos produtivos, graças à ciência e à inovação, levando ao desacoplamento absoluto entre produção de mercadorias e pegada ecológica. Infelizmente, o consumo global de matéria e energia só faz aumentar. Quando parece se estabilizar em certos países avançados ou certos setores é porque deslocalizaram parte da sua produção para outros países. O único setor em que um desacoplamento absoluto é factível (e desejável no prazo mais curto possível) é o das emissões de gases de efeito estufa, graças à transformação da matriz energética (à custa, no entanto, de outras extrações e poluições, mas que podem ser consideradas um mal menor diante da urgência climática).
Para os defensores do decrescimento, a fé na desmaterialização ou na economia verde não é nada mais que a nova roupagem do mito do progresso material infinito próprio da sociedade industrial. Vários estudos mostraram os limites das soluções tecnológicas (ver, por exemplo, M. & J. Huesemann “Technofix”). Com certeza novas tecnologias são necessárias, mas se estiverem a serviço de um consumo ilimitado, seus resultados serão sempre anulados.
Por isso o movimento a favor do decrescimento não defende algum tipo de recessão ou de decrescimento do PIB, ou mesmo uma “outra economia”. Ele advoga a saída da economia como princípio organizador da sociedade. Trata-se de outro projeto de civilização, que visa tanto à redução da pegada ecológica quanto à indispensável e concomitante redução drástica das desigualdades. De fato, a redução de consumo material que isso representa só pode ser aceita se a sociedade for bastante igualitária e democrática. O fim da subordinação dos desejos e da vida em geral às necessidades da economia é considerado como emancipatório. Para o movimento decrescentista, a inovação não vai parar, ao contrário, a criatividade será liberada, mas as novas tecnologias eventualmente inventadas deverão ser objeto de deliberação democrática e compatíveis com os objetivos sociais e políticos e contribuir para a redução da pegada ecológica.
IHU On-Line - Críticos da ideia de decrescimento econômico argumentam que países subdesenvolvidos ainda não se desenvolveram como os países ricos, e por isso precisam realizar investimentos a partir da extração mineral, por exemplo, para crescerem economicamente e se desenvolverem. Na perspectiva do decrescimento e do antropoceno, como se deve pensar o desenvolvimento de regiões subdesenvolvidas? É possível conciliar desenvolvimento e sustentabilidade?
Philippe Léna - O “desenvolvimento” tal como existe nos leva à catástrofe. A noção de desenvolvimento foi forjada no pós-guerra e, para os países industrializados, descreveu adequadamente um ciclo de crescimento que permitiu satisfazer tanto os donos do poder econômico quanto parte significativa da demanda social, à custa de uma drenagem de recursos do mundo inteiro e de um gigantesco impacto ambiental. Isso não pode ser reproduzido. Porém serve de modelo e de objetivo, tanto para países “em desenvolvimento” quanto para países industrializados que sonham em recuperar essas taxas de crescimento, vistas como panaceia para todos seus problemas. Todas as classes sociais esperam do crescimento econômico a realização dos seus desejos de consumo de bens e serviços. Isso seja qual for o nível de “desenvolvimento” do país ou de consumo das pessoas. O “desenvolvimento” parece ser uma verdadeira armadilha da qual é difícil sair.
De acordo com Herman Daly, os inconvenientes do sistema econômico atual superam hoje suas vantagens, fenômeno que ele chama de “deseconomia”. Mesmo assim, parece que o sistema é condenado a crescer; não existiria alternativa. Quando há recessão ou mesmo estagnação numa região ou país durante um certo tempo, isso se traduz em aumento do desemprego e da pobreza, alteração do estado de saúde e até diminuição da expectativa de vida. Dá para entender que a noção de decrescimento assuste! Principalmente quando se leva em conta as enormes necessidades de consumo de amplas camadas da população dos países em desenvolvimento e do número crescente de pessoas abaixo do nível de pobreza em países industrializados. Como resolver essa equação?
Na Europa, estudiosos consideram que até 30% dos empregos consistem em produzir coisas inúteis, ou que são danosas para o ambiente e a saúde, e poderiam ser suprimidos. Mas com que efeito sobre a riqueza global do país e o nível de vida? Da mesma forma, a diminuição voluntária do consumo individual (desejável), no quadro atual, leva a um aumento do desemprego. O sistema precisa criar permanentemente novos desejos (apoiando-se na publicidade e no marketing) para se manter e para que a mecânica da acumulação continue funcionando. Porém, é cada vez mais reconhecido que a máquina que produz riquezas é ao mesmo tempo a máquina que produz frustrações. A desigualdade é funcional para o sistema, ela alimenta as frustrações e os desejos de consumo. Por isso os decrescentistas dizem que é impossível frear esse trem desgovernado sem acabar com as desigualdades. Isso deveria ser o coração do projeto político levando à sustentabilidade. Para não provocar um caos social e político, essa partilha da riqueza deveria se apoiar em instituições sólidas e ser progressiva, garantindo primeiro o acesso universal a um alto nível de educação e saúde, saneamento básico, moradia e conhecimento.
Se a sustentabilidade é encarada como um objetivo que pode ser alcançado dentro do paradigma atual, então de fato a extração de recursos para garantir investimentos em “desenvolvimento” se torna quase que inevitável, acirrando a contradição entre ambiente e economia. Mesmo assim, devemos constatar que o extrativismo se expandiu na época de preços altos (até 2013) em muitos países (particularmente na América Latina e no Brasil) sem que tenha sido aproveitado para criar as instituições e os mecanismos que poderiam reorientar a sociedade no caminho da sustentabilidade (apesar de alguns tímidos avanços).
IHU On-Line - O que seria uma alternativa ao modelo de desenvolvimento baseado na extração de recursos naturais, tal como é feita no Brasil? Como é possível garantir desenvolvimento sem a atual exploração dos recursos naturais?
Philippe Léna - Não existe modelo alternativo pronto para substituir o atual, em lugar nenhum. Isso é um verdadeiro desafio civilizacional. Cada país precisa traçar seu caminho em função da sua história e das suas características. Isso dito, vale notar que existem múltiplas experiências locais (no Brasil e em quase todos os países) que rompem, em grau variável, com o paradigma dominante. Por si só elas não podem provocar a reorientação do sistema, mas elas têm seu papel. Elas mostram que, ao menos em pequena escala, é possível retomar parcialmente o controle, tornar-se coletivamente ator do seu destino. O modelo de exportação de recursos está na contramão da autonomia e da sustentabilidade, provoca uma destruição muito maior que aquela que resultaria do abastecimento da população nacional, além de gerar dependência, por isso não pode ser prolongado.
Além de experiências locais, existem trabalhos de pesquisa e propostas sérias visando uma organização alternativa da sociedade em torno do bem comum e de uma economia social e solidária. Apesar da heterogeneidade desse campo (algumas propostas não alcançam o coração da questão), a maior parte dos estudiosos sublinha a necessidade de produzir e consumir de forma muito diferente, sair da corrida atrás de crescimento, acabar com a verdadeira guerra à vida que estamos travando e formular um novo “contrato social” que inclua os interesses das outras espécies. Isso vai muito além da “economia verde” e da invenção de novos mercados organizados em torno de produtos “verdes”. Implica repensar o trabalho e sua organização, as finalidades e modalidades da produção e do consumo. Muitos grupos de trabalho estão tentando delinear o que poderia vir a ser uma sociedade sustentável.
Alguns dos temas debatidos são a multiplicação das formas coletivas (ou compartilhadas) de propriedade, o uso de várias moedas simultaneamente, a formação de um novo empreendedorismo em torno do “comum”, a partilha do trabalho, a inocuidade dos produtos e processos produtivos, o reforço institucional da solidariedade e a garantia de uma renda decente para todos etc. A lista é longa e a dificuldade, imensa. Essas questões, e muito mais que não dá para abordar aqui, se colocam tanto para países industrializados quanto para países em “desenvolvimento”. O objetivo de conseguir um desenvolvimento qualitativo para todos poderia constituir seu ponto de convergência. Setores ou países engajados nesse processo de transformação poderiam abandonar a competição e colaborar nessas bases. Parece utópico, e é bem possível que somente uma crise grave possa convencer a maioria a entrar nesse processo. Mas vale a pena tentar. Da mesma forma que a desigualdade não pode esperar da economia sua solução, o mesmo ocorre com a sustentabilidade ecológica. O conceito de antropoceno tem esse lado positivo de tornar evidente a necessária articulação entre política e ecologia. A ecologia é expressamente política; sem transformação profunda na organização da sociedade, não poderá haver sustentabilidade, e há urgência.
IHU On-Line – Que papel o Brasil pode desempenhar na crise ecológica global?
Liz-Rejane Issberner - Por tudo o que aqui foi comentado, seria difícil esperar que o Brasil pudesse contribuir de forma efetiva para minimizar a chamada “crise ambiental”, pelo menos enquanto perdurar a crise econômica. Alguns analistas duvidam mesmo que o país honre os compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa em 37% em 2025 e 43% em 2030, assumidos na Conferência do Clima em Paris. Notícias como o aumento do desmatamento no Brasil podem comprometer a meta do país de redução de 80% do desmatamento em 2020. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe calculou que o desmatamento aumentou 60% entre 2014 e 2016, chegando a quase 8 mil km2 em 2016. Também estão no sentido contrário ao acordo as propostas apresentadas no Legislativo, propondo a redução das áreas protegidas em Unidades de Conservação na Amazônia em cerca de um milhão de hectares.
As negociações internacionais avançam num ritmo muito aquém da urgência necessária para se reduzir os efeitos do aquecimento global, provocado pelas emissões crescentes de gases de efeito estufa. O protagonismo exercido pelo Brasil, nas negociações internacionais sobre meio ambiente, está se extinguindo, em parte refletindo a tomada de posições por parte da diplomacia brasileira e em parte também pelas notícias negativas sobre o desmatamento no Brasil, a construção de grandes barragens na Amazônia, a mudança no Código Florestal, os incentivos às atividades mineradoras, o avanço do agronegócio em terras florestadas, entre outras.
Enquanto isso, os dois maiores poluidores do planeta, Estados Unidos e China, seguem rumos diferentes. A era Trump será de retrocesso em tudo o que diz respeito ao meio ambiente, em especial ao combate às mudanças climáticas. Já a China parece assumir um papel de liderança no debate sobre o clima, anunciando que pretende ultrapassar a meta para 2020 e mantendo diálogos com vários países, inclusive os Estados Unidos, para convencê-los da necessidade de cumprir os compromissos firmados em Paris.
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Política brasileira está na contramão do antropoceno. Entrevista especial com Liz-Rejane Issberner e Philippe Léna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU