Por: Cesar Sanson | 01 Julho 2013
"A opção governamental por estimular a venda de veículos – houve momentos em que a entrada zero foi combinada com o pagamento em 90 prestações – possibilitou à indústria automobilística um céu de brigadeiro nesta última década, porém o “nanismo” e a hipertrofia míope e de curto prazo do investimento na cidade engendrou o caos". O comentário é Carlos Lessa, ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES em artigo na revista Carta Capital, 28-06-2013.
Eis o artigo.
A qualidade da vida urbana é um ingrediente-chave na vida da maioria das famílias brasileiras. Com 80% de nossa população urbana e 50% metropolitana, são variadas as dimensões definidoras dessa qualidade. Entre essas dimensões, ocupa um lugar-chave a questão da mobilidade. De forma simplificada, podemos dizer que cada integrante da sociedade urbana dedica ao trabalho ou atividade remunerada um terço das suas 24 horas diárias. Outro terço é usado para dormir. Sobram oito horas diárias para todas as demais atividades que não a obtenção de renda monetária, isto é, para as atividades ligadas à fisiologia individual, à convivência e lazer com amigos e família, a compras e, por vezes, ao aperfeiçoamento cultural e profissional. Ao menos em tese, cada um é soberano em relação a este tempo de existir.
O tempo de existir é essencial e universalmente afetado pelos deslocamentos residência-trabalho-residência. Para quase todos, o tempo gasto nos deslocamentos é monótono, angustiante e, de certa forma, jogado fora, o que aponta para a óbvia importância da malha urbana, dos serviços de transporte público ligados ao deslocamento pela malha e à organização, tipo, quantidade e modalidades de utilização de veículos de transporte de pessoas e mercadorias. Mesmo quando o habitante que se desloca a pé em direção ao trabalho ou atividade, muitas vezes é obrigado a fazer outros deslocamentos que dependem da mobilidade urbana. Se o cidadão urbano, notadamente o pobre, tiver necessidade de horas adicionais no trabalho, é mais punido.
No Brasil, cresceu de forma explosiva a população de veículos automotores. Creio que, no Rio, andou próxima a 10% ao ano; em Brasília, por mais de uma década, cresceu cerca de 15% ao ano. Taxas parecidas foram vivenciadas nas demais cidades, inclusive nas médias. É o resultado de uma política míope que privilegiou, no combate à inflação, o corte do investimento público e, para sustentar a atividade econômica, facilitou e estimulou um intenso endividamento familiar. A opção governamental por estimular a venda de veículos – houve momentos em que a entrada zero foi combinada com o pagamento em 90 prestações – possibilitou à indústria automobilística um céu de brigadeiro nesta última década, porém o “nanismo” e a hipertrofia míope e de curto prazo do investimento na cidade engendrou o caos.
Muitos festejaram o acesso ao veículo automotor próprio, ignorando o custo do combustível, da manutenção e da fiscalidade associado ao “patrimônio” da posse do veículo. É comum a família endividada, pressionada pelos custos, deixar o veículo próprio estacionado e voltar ao péssimo transporte público. O pior acontece quando quer vender o veículo já usado e descobre que o mercado de segunda mão não paga sequer o correspondente à dívida residual. Por outro lado, o congestionamento tem uma dimensão universal, que incorpora desde o ônibus velho ao BMW. Somente escapa o arquimilionário que tem heliporto na residência e no escritório. Todas as faixas etárias e níveis de renda são incomodados pela degradação da qualidade de vida. Este pano de fundo tem tudo a ver com o início das manifestações.
O aumento das tarifas de transporte coletivo urbano foi gota d’água que produziu uma metamorfose espetacular. Uma novíssima geração de brasileiros foi para as ruas protestar e se situar como sujeito que faz história. O paradigma das antigas mobilizações foi estruturalmente modificado com a rapidez do uso de redes sociais. O tradicional “correio” boca-a-boca e alguma liderança convocatória não explicam a velocidade, intensidade e espacialidade com que o aumento tarifário se transformou num fenômeno político de massa que, rapidamente, preencheu um primeiro ato com uma gigantesca lista de rejeições, reclamações, sugestões e reivindicações. Sem a pretensão de interpretar esse fenômeno, quero colocar algumas questões para reflexão.
A questão urbana inspirou toda uma pauta que se iniciou no transporte e se encaminhou para os serviços de saúde, educação e segurança. A corrupção foi colocada como variável explicativa, e a pauta transbordou, colocando sob acusação o sistema de partidos, as representações políticas e algumas instituições públicas mais visíveis. A pauta cresce e tende a se diversificar. Lendo os cartazes, é possível perceber ânimo, ironia, amor, desinformação etc.
É surpreendente e sintomática a rejeição da ideia do “circo” substituindo o “pão”. O futebol, alegria do povo, foi colocado entre parêntesis. Desde a mutilação do Maracanã, no Rio de Janeiro (a reforma custou 1,2 bilhão de reais para reduzir à metade o número de lugares) passando pelo Mané Garrincha (que, em Brasília, foi iniciado com orçamento de 650 milhões de reais e custou 1,4 bilhão de reais) e com os demais estádios das cidades brasileiras sendo convertidos em “casas de ópera” (onde o povo brasileiro não pode mais torcer em pé e o povão terá que pagar uma entrada cara e proibitiva), cristalizou-se, pela visibilidade e interesse do povo brasileiro pelo futebol, a dimensão de corrupção (provável) e subserviência à FIFA.
O governo brasileiro abriu mão de sua soberania, ao autorizar a venda de bebida alcoólica à minoria que pode pagar ingresso; atropelou o espaço urbano atendendo à exigência da FIFA de uma circunferência de isolamento de três quilômetros em torno de cada estádio utilizado nos jogos da FIFA (essa exclusão foi anunciada pelo Ministério do Planejamento, quando propôs feriado no período dos jogos da FIFA, a partir da pergunta de como ficaria o congestionamento). O povo leu tudo isso como um imenso “conto do vigário”, que macula a paixão pelo futebol com renúncia à soberania e pretexto para processos de corrupção. O povo formou uma grande “torcida” participativa.
Sei que muitos manifestantes tem uma reflexão própria bastante amadurecida, e é interessante observar os “diálogos” dos cartazes, por exemplo: ao lado de um cartaz que diz; “imposto zero”, está outro outro que diz “mais verbas para a educação e saúde”. Os cartazes, em uma sociedade televisiva, são feitos e empunhados por muitos manifestantes com a óbvia preocupação de serem captados pela lente do fotógrafo e da televisão. Ilustra isso um cartaz em português e inglês, cujo autor afirmou que, assim, tinha maior probabilidade de ser captado pela TV internacional (o “eu”, corporificado no cartaz, está aqui; eu existo!).
Estou certo que haverá o debate e prevalecerá a vontade política da maioria. Estou certo que estas manifestações são apenas a primeira voz que apontará para um projeto nacional. Sei que esta é a provável evolução da novíssima geração de atores políticos brasileiros. A preliminar do “eu” tende a constituir o “nós”. Este resgate da participação pública, desde o início, está acompanhado pelos símbolos da nação: bandeiras, hinos, músicas. A manifestação, no sentido operacional, é majoritariamente, uma “torcida” pelo Brasil, e tem uma componente saudável de festividade, como a linda a manifestação dos pais com seus bebês. É deslumbrante ver gente espontaneamente fornecendo comida para os jovens que estavam acampados exigindo o diálogo com o Governador Sérgio Cabral, e também para os guardas que ali estavam bloqueando o acesso. Há um simbolismo na vinda de manifestantes da Rocinha com cartazes dizendo “queremos melhor ensino e saúde na comunidade” e “dispensamos o teleférico”.
Como velho professor, estou encantado em ver a novíssima geração representar nossa gente. Sou da geração que abriu os olhos políticos com o suicídio de Vargas e a campanha “O petróleo é nosso”; militei pelo novo Estado de direito desde o exílio e até a Constituição de 1988, e assisti sua mutilação por mais de 50 Emendas Constitucionais. Não aceitei o Consenso de Washington. Vi a ideia da “globalização” ser vendida como ensina um velho provérbio turco: “se quereis vender um corvo, pinte-o rouxinol”.
Tenho confiança na acelerada pedagogia das manifestações. É acelerada a educação política dos manifestantes. Um povo que se manifesta, no limite, tudo pode; transporta, dentro de si, um futuro melhor. Dentro do coração de cada manifestante há a potencialidade da civilização brasileira. Este é um passo decisivo para a periferia do mundo e o início de uma modificação significativa das relações geopolíticas do Brasil com a hispanoamérica e com a África. Um gigantesco passo para a história brasileira foi ensaiado com as manifestações convocadas pela má qualidade da vida urbana.
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"Tenho confiança na acelerada pedagogia das manifestações" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU