16 Março 2012
“A Lei Geral da Copa, ao constituir, entre outras coisas, direitos de patente e de exclusividade comercial à Fifa, viabiliza a reserva, o monopólio de mercados que, juntos, representam parte significativa de seus lucros”, constatam os entrevistados.
Confira a entrevista.
As redes sociais têm sido o palco das reivindicações de torcedores, movimentos sociais e sociedade civil contra o Projeto de Lei – PL 2330/11, que dispõe sobre as medidas relativas à Copa das Confederações Fifa de 2013 e à Copa do Mundo Fifa de 2014, que serão realizadas no Brasil. “As redes sociais cumprem um papel importante de pressão pública e vocalização de demandas da sociedade, fazendo que com que as mensagens necessariamente cheguem a quem tem que chegar. Não há como as autoridades ignorarem o poder das redes na internet e tomarem decisões alheias ao que nelas circula. O tuitaço ajudou tremendamente a pautar as nossas reivindicações na imprensa. Além do mais, quando um tópico chega aos Trending Topics, ele será imediatamente visto por centenas de milhares de usuários do Twitter que foram expostos à campanha e entraram na página para enviar mensagens aos deputados”, avaliam Guilherme Varella e Thiago Hoshino. Segundo eles, a internet está sendo usada como um instrumento para forçar a transparência das negociações e, em função das pressões via redes sociais, vários pontos do PL 2330/11 já foram alterados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, eles esclarecem os equívocos da Lei Geral da Copa e enfatizam que ela altera “sumariamente a legislação brasileira, normas amplamente debatidas e, em muitos casos, fruto histórico de pressão e reivindicação dos movimentos sociais, para atender a exigências de organismos internacionais como a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional – COI. Entidades, diga-se de passagem, nada idôneas, como é notório depois de repetidas denúncias e escândalos, tampouco filantrópicas. São verdadeiras empresas transnacionais, mais preocupadas com o jogo do mercado do que com os jogos esportivos”.
Guilherme Varella é advogado do Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, e Thiago Hoshino é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR e assessor jurídico da Organização Terra de Direitos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a avaliação do tuitaço contra a Lei Geral da Copa, que aconteceu no final de fevereiro, e da campanha que está no ar desde novembro do ano passado?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – O tuitaço mostrou que a sociedade está alerta aos desmandos da Fifa e às concessões que governo e Congresso podem fazer para atender aos interesses comerciais da organizadora do evento. A sociedade está mobilizada e pressionando para que a organização da Copa não atropele as leis nacionais e não traga, desde já, um legado negativo ao país. Movimentos sociais, organizações de defesa de direitos, associações de torcedores, institutos de defesa dos consumidores, sindicatos, movimentos de defesa da moradia, todos estão mobilizados contra a aprovação da Lei Geral da Copa e das demais leis que podem violar direitos fundamentais básicos. A população tem enviado milhares de e-mails aos deputados, pedindo que modifiquem a Lei Geral, e, devido à pressão, vários pontos já foram incluídos no texto. No entanto, isso é pouco e a lei continua abusiva. Assim, a pressão continua e mais milhares de e-mails serão enviados para os congressistas para que rejeitem o Plano de Lei 2330.
IHU On-Line – Qual a força das redes sociais para que se aposte em um tuitaço no intuito de mobilizar a sociedade civil contra a Lei Geral da Copa?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – As redes sociais cumprem um papel importante de pressão pública e vocalização de demandas da sociedade, fazendo que com que as mensagens necessariamente cheguem a quem tem que chegar. Não há como as autoridades ignorarem o poder das redes na internet e tomarem decisões alheias ao que nelas circula. O tuitaço ajudou tremendamente a pautar as nossas reivindicações na imprensa. Além do mais, quando um tópico chega aos Trending Topics, ele será imediatamente visto por centenas de milhares de usuários do Twitter que foram expostos à campanha e entraram na página para enviar mensagens aos deputados.
Para a coordenação do tuitaço, os comitês populares de todas as cidades-sede trocam informações com os sindicatos, com o Idec, o movimento de moradia, e divulgaram o absurdo monopólio da Fifa, o desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor – CDC, as remoções forçadas, o impedimento do direito de greve. E, a partir disso, esses movimentos têm o dever de constranger publicamente aqueles que permitirem isso e que votaram contra o interesse público e os direitos do povo. Para a Copa, a internet já está sendo um instrumento para forçar a transparência das ações e para mostrar a todos os abusos que vêm acontecendo.
IHU On-Line – Em que consiste a campanha "Fifa, abaixa a bola"? Como entender a afirmação de que o Brasil está se vendendo para a Fifa com a Lei da Copa?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – A campanha nada mais é que um instrumento para fazer a voz dos torcedores chegar com força e tentar se fazer ouvir, tanto quanto os gabinetes de Brasília ouvem as exigências da Fifa. Em todos os países sedes da Copa do Mundo há negociações dos governos com a Fifa, e quanto mais fraca a democracia do país, mas forte serão os abusos da entidade. Os nossos governantes tem que entender que a mobilização "Fifa, abaixa bola" serve para legitimar um enfrentamento mais duro do governo com a Fifa e serve de justificativa para anular alguns dos piores abusos – principalmente aqueles em que a própria União assumirá os prejuízos. A campanha vai continuar até que o PL seja modificado ou rejeitado. E, ainda que aprovado, será mantida para publicizar e evitar desrespeitos maiores que ainda virão. Cada deputado e cada senador que votar contra o povo e a favor da Fifa será acionado e lembrado. A campanha não é contra a Copa do Mundo no Brasil. A campanha é pela Copa do Mundo aqui. Mas de uma forma justa e acessível à sociedade brasileira.
IHU On-Line – Quais são os principais pontos críticos e abusos a direitos trazidos pelo Projeto de Lei Geral da Copa (PL 2330/11)?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Toda a concepção da Lei Geral é um grande equívoco, tanto do ponto de vista político como jurídico. É possível afirmar isso diante de três constatações básicas, que dizem respeito à motivação do Projeto, ao modus operandi de sua elaboração e tramitação e à sua finalidade.
Em primeiro lugar, é preciso que fique claro: estamos alterando sumariamente a legislação brasileira, normas amplamente debatidas e, em muitos casos, fruto histórico de pressão e reivindicação dos movimentos sociais para atender a exigências de organismos internacionais como a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional – COI. Entidades, diga-se de passagem, nada idôneas, como é notório depois de repetidas denúncias e escândalos, tampouco filantrópicas. São verdadeiras empresas transnacionais, mais preocupadas com o jogo do mercado do que com os jogos esportivos.
Nesse sentido, a própria motivação para o PL 2330/11 é ilegítima, uma vez que se baseia meramente em contratos privados com esses entes. O Caderno de Garantias e Responsabilidades, por exemplo, que tem servido de argumento para justificar essas mudanças, foi entregue em 2007 à Fifa pelo Brasil, sem respaldo, discussão ou conhecimento da população. Até hoje esses documentos não estão publicizados, não temos acesso a seu conteúdo integral e não sabemos afinal a que estamos vinculados.
Uma segunda questão que merece ser mencionada é a forma como estamos mobilizando um aparato institucional tremendo, em regime de urgência, para responder aos supostos “prazos” impostos por esses atores. Existem inúmeras carências muito mais estruturais em nosso país que não recebem nem uma fração dessa atenção, dessa prioridade, nem tantos recursos financeiros e humanos. Todo um universo de gestão extraordinário está sendo criado nas esferas federal, estadual e municipal para suprir a demanda absolutamente transitória e elitista de promoção dos megaeventos: secretarias da copa, grupos de trabalho interministeriais, comissões especiais etc. Com a Lei Geral não é diferente: a máquina inteira do Legislativo é pressionada a se submeter a essa agenda, custe o que custar e ainda que sem debate qualificado, pois há interesse tanto do Estado como de grandes corporações no tema.
Por fim, quanto à finalidade do Projeto, é nítido que os grupos por ele beneficiados são poucos. A distribuição de ônus e bônus ali prevista não é equitativa. Veja, não afirmamos em nenhum momento que leis não possam ser modificadas, pelo contrário, essa é a dinâmica cotidiana do poder Legislativo. Contudo, é inconstitucional esvaziar direitos sociais coletivos e difusos consolidados, pelo princípio da vedação do retrocesso social. Mais do que isso, fazê-lo em detrimento do interesse público é atropelar a própria noção de soberania popular.
IHU On-Line – Quais serão os prejuízos do PL 2330/11 à sociedade durante a realização da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Os prejuízos diretos e indiretos são muitos. Porém, de maneira didática, assinalamos na recente manifestação pública da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa os seguinte tópicos:
a) Retirada de direitos conquistados por vários grupos sociais, como a meia-entrada e outros direitos dos consumidores (Artigo 26).
b) Restrições ao trabalho informal, comércio de rua e popular durante os jogos (Artigo 11).
c) Obstáculos para que o povo brasileiro possa assistir aos jogos como achar melhor, com limitação à sua transmissão por rádio, televisão e internet (Artigo 16, inciso IV).
d) Submissão da União Federal à Fifa por meio de sua responsabilização por quaisquer “danos e prejuízos” causados ao evento privado (artigo 22, 23 e 24).
e) Criação de novos tipos penais, com repressão da liberdade de expressão, da espontaneidade e da criatividade brasileira (Artigos 31 a 34).
f) Violação do Estatuto do Torcedor em favor do monopólio da Fifa (Art. 67).
g) Risco ao direito à educação pela possível redução do calendário escolar (Artigo 63).
h) Permissão excepcional de venda de bebidas alcoólicas durante os jogos, retrocedendo em relação à legislação existente (Artigo 29).
i) Privatização de símbolos oficiais e do patrimônio cultural brasileiro pela Fifa através de procedimento especial junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI , dando margem a abusos nas reservas de patente (Artigo 4º a 7º).
j) Infração direta ao Código de Defesa do Consumidor, isentando a Fifa de responsabilidade civil (art. 27, I), permitindo venda casada (art. 27, II) e cláusula penal (art. 27, III), além de restrição à liberdade de escolha do consumidor (art. 11).
IHU On-Line – Como a Fifa se coloca diante deste PL 2330/11?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Como qualquer grupo que pretende ver seus interesses comerciais assegurados pelo Estado: continuamente barganhando, pressionado, ameaçando pela sua aprovação. A Lei Geral da Copa, ao constituir, entre outras coisas, direitos de patente e de exclusividade comercial à Fifa, viabiliza a reserva, o monopólio de mercados que, juntos, representam parte significativa de seus lucros.
A minuta original do PL elaborada pelo Ministério dos Esportes e pela Casa Civil contemplava muitas outras questões caras à Fifa que, com o tramitar da proposta, o acirramento das polêmicas e a ampliação da crítica por parte da população, tiveram de ser descartadas. Isso tem gerado atritos entre o governo federal e a organização, desembocando nas recentes declarações malcriadas do secretário-geral, Jerome Valcke, ocasionando um estremecimento momentâneo das relações. Porque, aqui, existe um elemento que ultrapassa o lobby convencional, já que estamos falando de relações também diplomáticas e sobre um tema que é caro ao imaginário brasileiro. Mesmo assim as negociações continuam a todo vapor.
IHU On-Line – Quais os desafios que o PL 2330/11 apresenta do ponto de vista do
ordenamento jurídico brasileiro?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Não é preciso utilizar o eufemismo “desafio”. É mais realista falarmos de “ameaças”. Desafios devem ser superados, ameaças, evitadas. A Lei Geral da Copa é um cavalo de troia que abre perigosos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Ela não é a primeira medida e tudo indica que não será a última a regulamentar o “regime de exceção” para os jogos. Antes dela tivemos o Ato Olímpico – Lei n. 12.035/2009 –, as isenções fiscais federais – Lei n. 12.350/2010, o RDC, Regime Diferenciado de Contratações Públicas – MP 421/2011. À frente, o horizonte é igualmente nebuloso com os Projetos de Lei do Senado n. 394/09 e n. 728/2011 , já acertadamente apelidado, por seus absurdos, de “AI-5 da Copa”. Isso sem mencionar a legislação estadual e municipal em câmbio constante. Portanto, a lei também não é tão “geral” assim e pode significar um ensaio para que temas controvertidos sejam aprovados em caráter provisório e, posteriormente, incorporem-se permanentemente à legislação.
IHU On-Line – Qual tem sido o posicionamento das organizações e da sociedade civil
de modo geral diante da Lei Geral da Copa? Quais são as alterações sugeridas para que essa lei atenda às demandas da campanha?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – A mídia, os grandes empresários interessados e boa parte do Estado buscam forjar e reproduzir um falso consenso em torno da Copa do Mundo 2014, dos Jogos Olímpicos de 2016 e de toda a sua preparação. Não é verdade que a sociedade esteja de acordo com as inúmeras arbitrariedades em cena.
Sobre essa “legislação de exceção”, como um todo, a intenção dos Comitês Populares da Copa é consolidar um levantamento extenso e analítico de todo esse bloco de medidas, demonstrando e denunciando a engenharia jurídica por trás dos megaeventos.
Nosso mote central agora é barrar a Lei Geral. Por dois motivos. 1) de modo bastante objetivo, para que a Copa do Mundo de 2014 aconteça, ela é completamente desnecessária. 2) se fôssemos emendá-la no sentido de garantir direitos, simplesmente nada sobraria do texto original. Uma lei verdadeiramente legítima teria de ser construída da base, do diálogo com as comunidades afetadas e com os movimentos sociais urbanos. No final das contas, teria motivação, objetivos e procedimento totalmente distintos.
(Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin)
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Lei Geral da Copa: um equívoco político e jurídico. Entrevista especial com Guilherme Varella e Thiago Hoshino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU