29 Abril 2024
Deus vem a nós em cada estrangeiro. E reconhecê-Lo significa reconhecer a humanidade de todos os outros diferentes de nós.
O comentário é do historiador da arte Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 26-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
“Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que ali se passou nestes dias?”
É o que dizem dois discípulos, na tarde do dia da ressurreição, a um forasteiro que encontram no caminho de Emaús. Depois, quando se sentam juntos para a ceia, e o estrangeiro parte o pão, “os olhos deles se abriram e o reconheceram”: era realmente ele, o Mestre ressuscitado!
Eu me pergunto se os líderes da nossa direita ultracatólica e tão pouco cristã já leram essa página: Deus vem a nós em cada estrangeiro. E reconhecê-Lo significa reconhecer a humanidade de todos os outros diferentes de nós.
“A serva e a ceia em Emaús”, Diego Velázquez, 1618, Dublin, National Gallery of Ireland (Foto: Wikimedia)
Talvez seja esse o sentido profundo deste quadro de Diego Velázquez, que, em primeiro plano, nos mostra a mesa de trabalho de uma cozinha, em que, desta vez, já se acabou de cozinhar, e onde a serva é retratada a partir de uma modelo escolhida entre os mouriscos da Espanha.
Ela não olha para nós e nem olha mais para as coisas, aquela sublime natureza morta, que, em um momento anterior, ele havia lavado e reorganizado. Agora, ela está absorta em seus pensamentos: de Marta, torna-se Maria, uma maravilhosa Maria negra.
Ela está, precisamente, totalmente voltada para a vida interior, para a vida espiritual e contemplativa: talvez porque ouviu uma palavra de vida, uma palavra de salvação, cuja origem se vislumbra a partir da janela de serviço da cozinha, que se abre para a sala da taberna, onde três personagens estão jantando (na realidade, vemos dois deles, porque o quadro foi cortado nas laterais): os personagens da ceia de Emaús.
“Até na cozinha se encontra o Senhor e entre as panelas Ele lhes ajuda nas coisas interiores e nas exteriores”, escrevera Teresa d’Ávila. Reconhecer o outro, reconhecer o diferente: ninguém é estrangeiro quando comemos juntos.
No último filme daquele monumento vivo que é Ken Loach, um pub de uma pequena cidade inglesa devastada pelas escolhas de Margaret Thatcher e Tony Blair revela-se capaz de acolher, apesar de tudo, uma comunidade de refugiados sírios. Desconfiança, racismo, ódio contra os estrangeiros: como por toda a parte, como aqui.
Mas, depois, a descoberta de que todos nos alegramos e sofremos pelas mesmas coisas. Que todos somos de carne. E a virada chega quando essa comunidade de diferentes consegue se sentar à mesa para comer juntos.
“When you eat together, you stick together”: quando comemos juntos, ficamos juntos. Assim estava escrito debaixo da fotografia que, nas paredes do único espaço público que restava na cidade (o pub!), retratava um almoço social preparado pelas mulheres para unir os mineiros em greve.
Assim, acontece de novo: entre pobres que deixam de travar uma guerra entre si. Seus olhos se abrem: eles se reconhecem como irmãos. E, naquele momento, ninguém é estrangeiro.
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Ninguém é estrangeiro quando comemos juntos. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU